Do Silêncio ao Sorriso

Categoria "ECA na Escola"

Ivanete Nunes de Oliveira

Paulo Jacinto (AL)

Professora

Do silêncio ao sorriso

Naqueles dias, durante uma "brincadeira" regada a álcool, o menino João, de 13 anos, órfão de pai, matou um colega com uma arma. Desde então, ele e sua família tiveram o rumo de suas vidas mudado para sempre. De menino agitado e travesso, João passou a ser tratado como um sujeito perigoso. Não saiu ileso ao julgamento social, feito à boca miúda, pelas calçadas, portas e praças da cidade pequena, revelando o medo de uma situação incomum, aliado à total descrença nos meios estatais para resolver conflitos e na capacidade de superação de uma criança.

Passou-se algum tempo até que João voltasse para a escola, cumprindo determinação judicial. Na sala dos professores, todos fomos avisados, e um silêncio cheio de dúvidas dominou o ambiente. Nunca a escola tinha lidado com alunos nessas circunstâncias. Mas era nosso papel acolher João.

Ele não era nem uma força da natureza, nem um ser sobrenatural ou inominável. Era apenas um menino

Primeiro dia da volta. Vou para a classe entre confiante e sobressaltada, querendo fazer o meu melhor, mas duvidando da capacidade da escola e da própria justiça para conduzir o caso. Decidi agir naturalmente, procurando conversar com João. Tudo ficaria bem. Afinal, ele não era nem uma força da natureza, nem um ser sobrenatural ou inominável. Era apenas um menino.

Desde o primeiro dia, ele mostrou-se resistente a qualquer tentativa de aproximação. Brigas, confusões e palavrões passaram a fazer parte de nosso cotidiano escolar, agora permeado por insultos e lembranças da infração de João. O medo que os próprios colegas tinham dele só aumentava sua agressividade e incentivava seu isolamento. Para complicar, o garoto tinha duas irmãs menores, que estudavam na mesma escola e também sofriam com as circunstâncias. João era tratado como um problema pela sociedade, pelos colegas, pela família e pela escola. Mas não deixava de ser um menino.

Depois do grande julgamento público, dos olhares de reprovação, do afastamento, fez-se silêncio. João era agora "só mais um caso perdido". Todos pareciam saber qual seria seu futuro. Ninguém esperava muita coisa dele. E ele respondia com exatidão a essas expectativas.

Certo dia, a turma estava mais agitada do que de costume. Quantas vezes fui chamada pela secretaria? Quantas vezes parei a aula, conversei e reocupei aquela classe? Perdi as contas, mas nunca me saiu da memória o olhar de João quando, depois da milésima perturbação, o olhei e lhe disse: "Basta! Será que não basta?" Ele me olhou de volta em silêncio, como quem concorda, e repetiu: "Basta!" Pela primeira vez, senti que havia uma comunicação entre nós. Uma comunicação silenciosa, simples e que, apesar de frágil, foi capaz de resistir à algazarra de crianças que terminavam o dever, minutos antes do intervalo.

Tocou o sinal. A turma saiu, como sempre fazia. João me olhou mais uma vez e saiu. Eu também saí, mas já não era a mesma professora que entrara na sala de aula horas antes. Saía alguém que tinha dito: "Basta de silêncio!".

Vieram, então, as primeiras palavras: a coordenação da escola realizou reuniões, porque era preciso refletir, conversar, discutir, encontrar caminhos, mudar a forma de agir! O que mais a escola podia fazer? João, em liberdade assistida, já estava devidamente matriculado.

A escola cumpria a lei: enviava a freqüência e o aproveitamento escolar do garoto. Tudo direitinho, de acordo com o que prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Mas o que mais aquele livrinho poderia fazer por aquele menino? Garantia-lhe o direito de não ficar preso em estabelecimentos prisionais para maiores de 18 anos. No entanto, ele continuava preso ao estereótipo que a sociedade lhe impusera para mantê-lo longe.

Nossa luta para que o ECA não fosse apenas mais um punhado de palavras belas e mortas foi diária

Chegamos à conclusão de que enviar as listas de freqüência e aproveitamento não era suficiente. Já que queríamos cumprir o ECA, o faríamos integralmente. Que fosse cumprido o artigo 3º e déssemos todas as oportunidades e facilidades de que João precisava para se desenvolver física, mental, moral, espiritual e socialmente "em condições de liberdade e dignidade". Que se combatesse toda forma de discriminação, como prega o artigo 5º do ECA, também em relação a João. Que buscássemos maior participação de sua mãe, também professora, também confusa, também querendo ajudar o filho.

Assim foi feito: reuniões entre os próprios professores e coordenação, a fim de encontrar caminhos; reuniões com João e sua mãe; conversas e acompanhamentos do desenvolvimento dele, de seu comportamento em sala, de sua desenvoltura e relacionamento com os colegas. Principalmente nas aulas de Português e Redação, promovemos discussões sobre o preconceito e a discriminação em qualquer nível, a fim de combater o pensamento determinista sobre o futuro de alguém, a visão opressora e preconceituosa do coletivo. O afastamento e os insultos por parte dos colegas em relação a João e suas irmãs motivaram a aplicação de trabalhos em grupo e de atividades que buscassem a interação e o autoconhecimento.

Mais do que atenção, oferecemos a João amizade e compreensão. A comunicação já não acontecia apenas pelo olhar. Ela se consolidou e perdurou pelo sétimo e oitavo anos do Ensino Fundamental que João cursou naquela escola. Pudemos acompanhar, então, seu progresso lento, porém, seguro, e seu amadurecimento saudável. Nossa luta para que o Estatuto da Criança e do Adolescente não fosse apenas mais um punhado de palavras belas e mortas foi diária. O ECA concretizou-se na vida de João, ao contrário do que ainda acontece hoje com tantas vidas que mal se iniciaram e já são cerceadas pela negação de uma série de direitos.

Hoje João cursa o segundo ano do Ensino Médio, passou por acompanhamento com psicólogos, aprendeu a tocar instrumentos musicais e toca na banda de fanfarra do município. Fico feliz todas as vezes que seus atuais professores falam de seu comportamento e desempenho escolar. João acaba de cumprir medida socioeducativa de prestação de serviços à comunidade, prevista no artigo 117 do ECA, com realização de tarefas junto ao Conselho Tutelar do município. Assim ele vem contribuindo, ainda que indiretamente, para que outras crianças e adolescentes tenham respeitados seus direitos, na escola, na família e na sociedade.

ivaneteoliveira
Enviado por ivaneteoliveira em 06/04/2011
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