O Caso da Porta da Esperança
I
O mês era setembro. Disto eu me recordo muito bem. Sobre o dia certo é que eu ainda guardo as minhas dúvidas.
Mas o fato é que aquela audiência viera transcorrendo tranquila e monótona até o momento em que a procuradora do autor comunicou à juíza e aos prepostos das reclamadas os valores referentes a uma possível proposta de acordo:
- Dez mil e quinhentos reais...
- Ahm?! Mas aonde é que a senhora anda com a cabeça? Aonde foi buscar valor tão alto?! - inquiriu de imediato um dos advogados da parte contrária. Só pode estar brincando – continuou - ou então ficou maluca de vez!
- Meritíssima, peço que registre o meu protesto em relação às palavras que me foram dirigidas pelo colega...
- Seu protesto já está registrado, doutora - respondeu-lhe de imediato a juíza, tentando botar ordem no recinto e água fria na fervura da discussão.
Era uma morena de olhos castanhos e sorriso solto. Tão largo e solto, aliás, quanto o vôo ligeiro e alegre de uma andorinha. Naquela ocasião ela trajava um conjunto composto por blusa, saia e bota marrom, tudo em tom sob tom, e trazia nos lábios o batom mais avermelhado que as empresas de cosméticos já ousaram produzir. Compulsando rapidamente os autos, ela também concluíra se encontrar aquele valor bastante além do possível e do real.
- As palavras do advogado não eram de fato necessárias nesse momento e nem da forma como foram expressas, principiou a juíza lançando um olhar duro na direção do procurador da empresa. No entanto – prosseguiu - quanto ao valor proposto pela patrona do reclamante, também penso ter havido ali um certo exagero. Afinal, a maior parte das verbas rescisórias devidas neste processo já foram pagas, como comprova o Termo de Rescisão do Contrato de Trabalho juntado à fl. 08...
- Afinal – continuou a juíza - o reclamante recebeu ou não recebeu os valores ali descritos?
- Sim, meritíssima, mas...
II
Mas antes que a advogada conseguisse dizer qualquer outra coisa, o procurador da outra ré se ergueu de sua cadeira e completou o pensamento do seu colega:
- A senhora vem até aqui com uma proposta que mais parece história da carochinha ou sonho encantado! E nos apresenta uns valores completamente equivocados diante do que consta na própria peça inaugural! Por acaso a doutora também acredita na existência da Branca de Neve e dos sete anões? Ou crê que aquela porta ali - e ao dizer estas palavras o advogado se empertigou ainda mais em sua cadeira e apontou com uma das mãos a porta que guarnecia a entrada da sala das audiências – acredita a senhora que aquela porta seja a famosa “porta da Esperança”? E que o Sílvio Santos tenha se travestido em juíza? E por acaso – concluiu ele – por acaso a ilustre colega me acha parecido com o Lombardi?
Quando ouvimos aquilo tudo saltar num só pulo da boca do advogado, quase não conseguimos nos conter. Eu mesmo senti enorme necessidade de me extravasar numa risada doida. Só não o fiz devido ao autocontrole e à disciplina que adquiri junto aos antigos monges do Tibete.
Porém, ao desviar os olhos para a minha esquerda, pude ver a tal meritíssima de olhos castanhos e lábios muito vermelhos se segurando também para não explodir numa gostosa gargalhada.
Um segundo depois, entretanto, e ela já não conseguia mais se conter. Pusera-se a rir e a gargalhar com todo o gosto e para o mais puro desgosto da procuradora do reclamante.
Em seguida fora a minha vez de rir.
Posso concluir dizendo que aquela cena fora tudo de bom para desopilar o fígado e o coração de cada um de nós no início daquela agitada manhã de setembro.
Pois afinal – e como eu disse anteriormente – o mês era setembro. O que me falta nesse momento é a data: o dia certo eu não me recordo muito bem...