O tempo, o vento e o aviador

Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta e deserta parecia um cemitério abandonado. Era tanto o silêncio e tão leve o ar, que se alguém aguçasse o ouvido talvez pudesse até escutar o sereno na solidão.

Sob aquele céu, numa campina afastada rodeada por imensas araucárias, a família Cambará ceava em torno da mesa da cozinha do Sobrado. O Sobrado era, naquele momento, talvez o mais silencioso dos lares de Santa Fé. Se ouvia nada além do ruído estridente da cadeira de balanço da velha Bibiana Cambará.

– Se está dizendo lá nas bandas da cidade – disse José Lírio, quebrando o silêncio e recebendo o olhar desinteressado de todos que estavam em torno da mesa – que um tal de Santo Dumôn anda querendo voar tal os quero-queros do descampado!

– Cerra a boca, Liroca – interrompeu a velha Bibiana, ainda balançando a cadeira –, homem não voa, só chega perto de voar quando monta num cavalo guapo e sai troteando pelo pampa.

– Eu bem sei, Dona Bibiana. Sucede que ouvi o boato, o tal do Santo anda fazendo subir no ar um pássaro de trapo e ferro armado – continuou José Lírio – que pelo esperado faz homem voar, o tal do avieiro, ou aveado, sei lá que diabo de nome aquilo tem...

– Avião, Liroca – completou Licurgo Cambará, sentado na ponta da mesa – e de santo o infeliz que inventou aquele bicho não tem nada, é Santos.

– Entonces o aventurado é brasileiro? – perguntou Liroca.

– Brasiliano e federalista, o infeliz. – bradou Licurgo Cambará.

A velha Bibiana parou de balançar a cadeira.

– Que mil ventanias de Minuano empurrem esse infeliz pra baixo. – ela disse – Onde já se viu homem voando? Tinha que ser coisa de federalista, estes desgraçados. Entonces hão de bater asa? Pro inferno, isso sim.

– Mas imagina, Dona Bibiana – interrompeu Liroca –, o Santos vai virar santo se o invento der certo. Sair voando pelo descampado, sem cavalo, leve igual uma garça planando!

Bibiana deu-lhe um coice por baixo do tampo da mesa, fazendo-o dar um pulo na cadeira.

– Não me faz te pegar nojo, Liroca! Se um federalista virar santo um dia eu paro de acreditar em Deus. Que diabo de maragato és tu pra acreditar que homem voa? Era só o que faltava na revolução, um bando de parcos brincando de quero-quero enquanto os homens de verdade galopam pra defender a honra.

– Parece que o desvairado andou aprontando na tal da França – recompôs-se Liroca –, e está fazendo fama nas Europas.

– Se o parco quer voar, que deixe voar lá naquelas bandas. – disse Licurgo Cambará – No dia que pisar aqui no meu chão com ideias de passarinho, lhe arranco os bagos, e dou de alpiste aos quero-queros.

[baseado no romance épico "O tempo e o vento" de Erico Verissimo - os personagens citados são originais da obra.]