Pelo santo ofício
Sete é número desenhado na sola dos pés dos andarilhos, perambulantes por aí, sem ter onde sair, sem saber aonde chegar. A sorte que sopra nos ouvidos dos lenhadores, caçadores e aventureiros, como trombetas de anjos rebeldes, rebelados, depostos dos postos assumidos por longas horas, minutos, segundos e tempo incontável, homens de sete vidas como gatunos de olhos no peixe da venda de seu BolaSete. Sete são pela tradição cristã os dias devotados pelo criador a criação do mundo poetizado na gênese. Em cada um, um novo motivo brotado, uma coisa por dia desenhando como obra de arte nascida do pincel de uma grande artista, uma nova ordem e os elementos criando forma, volume, harmonia e por dias seguidos, as notas musicais das escalas e o número que demarca a perfeição, os dons, a conta do mentiroso.
Sete dias, sete noites, sete tardes e o vento oeste de final de dia sobre o açude exaurível na espera serena da água cair do céu, vento encruzilhado com a inclinação sonora dos moradores mais antigos da pacata cidade perdida no meio do tempo estéril, abrasivo, farpado, rugoso, o lugarejo esquecido pela misericórdia de Deus e abandonado pelo capeta chifrudo de rabo grande, unhas por fazer e corpo peludo fedendo a enxofre quando ainda moleque brincava de esconde-esconde com as inconformadas almas debochadas, as quais não aceitavam os desígnios da morte e ficavam a vagar vislumbradas pelas visões da existência nunca avistadas em vida, as mesmas que açoitavam as vacas prenhas nos currais da rocinha, assustavam as galinhas, além de colocar para latir de dia e de noite os cachorros indolentes, servidores apenas de ficarem a amontoar pulgas e espalhá-las nos quatro cantos das casas de morada humana.
Assim diziam os mais afoitos e possuidores de tantas primaveras, ali, assistindo de suas janelas a vida passar para lá, a vida voltando de lá, por dias, os estrondos gasguitos das mulheres a parir, trazendo para a vida mais bruguelos na finalidade de encher as ruas de moleques vira mundo de cabeça para baixo, mas como narrava já, naquele lugar, o velho dito que onde há criança, adulto não leva culpa, tudo se processava na mais lenta calma que difícil se faz até imaginar. Enquanto outros mais sossegados, cansados da vida de tanto suor, em seus tamboretes de madeira gasta, debaixo das árvores de sombra nos oitões das casas, assistiam aos enterros dos compadres mortos de morte morrida e o cortejo do defunto vindo na rede gasta. Ao lado, o radinho de pilha, esperando que o locutor diga de uma só vez o bicho do dia.
Os que mascam fumo de um lado, os mais afoitos do outro e lá longe as devotas e gordas senhoras de trouxas na cabeça, saias compridas e lenços coloridos, voltando de um dia de lavagem de roupa no único açude que corta as terras do fazendeiro coronel Trindade, homem de maior influência e cabeças de gado da cidade. As crianças em calças curtas de mãos ocupadas com seus piões ou bonecas de retalhos feitas pelas mãos das pretas velhas artesãs, jeitosas e àquelas de maior porte a empurrar as pipas de água ou a carregar água no pau de lata armado. Cada um devoto no seu afazer, cada um em missão sem pestanejar, sem direito a reclamar porque naquele tempo havia obrigação, afazeres, respeito e consideração.
O leiteiro passa na carroça sorridente a gritar “olha o leite, olha o leite fresquinho, fresquinho”, a janelinha formada pela falta de alguns dentes e no bule, na parte de traz, a plaquinha da propaganda do cemitério dos animais são Francisco de Assis, a última morada animal. Passa o padre bonachão pançudo na bicicleta enlameada, a graça da cidade pelos carões e sermões repetitivos – no princípio Deus... – e todos já sabiam do restante, quando não dormia na hora de entregar a hóstia aos misseiros, de muito uma dúzia, ao mesmo tempo que passava o compadre bicheiro Zé moquinho gritando pelo vento oeste estar agitado o bicho daquela tarde é águia e sem que ninguém mexa, o sino da igreja badala, badala, badala e todos, ao mesmo tempo, a benzerem-se. Um chiado e lá no alto da curva, alguém ver a coruja de olhos arregalados, com remela.