Estória de Pescador
João Sereno fazia jus ao nome. Não se conhecia sujeito mais tranquilo nas redondezas. Todos os seus ancestrais foram pescadores. Desde a mais tenra idade acompanhava o pai em algumas pescarias, mas somente já formado homem passou a acompanhá-lo nas investidas em alto mar. Conhecia todas as estórias dos pescadores, mas não costumava falar sobre elas.
A cidadezinha onde moravam sobrevivia quase que exclusivamente da pesca artesanal, cujo produto era integralmente para consumo interno. À noite, tinham por costume se reunirem na única pracinha, onde cada pescador contava seus feitos e aventuras vividas naquele dia. Só que por maior que fosse a aventura experimentada, o aventureiro nunca mostrava uma prova concreta do seu feito.
O pai de João, José Sereno, era prodigioso em suas estórias. Era conhecido como Zé Mentira, por contar as mais estapafúrdias estórias, às quais João era obrigado a confirmar, mesmo tomado do maior constrangimento. João não tinha estória. E a mais incrível estória de Zé Mentira era aquela que vinha repetindo há vários anos, referente à sua ação para libertar, sozinho, um grande tubarão que se embaraçara em redes deixadas por outros colegas, e em cuja aventura o velho Zé passara quase uma noite inteira mergulhando junto com o tubarão, ensinando-lhe como se libertar das malhas.
Segundo ele, após várias horas lidando com o animal, chegara a dialogar com o bicho sobre a melhor forma de ele escapar. Após intensa luta, Zé Mentira conseguira salvar o tubarão-monstro, que, mesmo muito cansado, ainda agradecera a Zé Mentira pela ajuda, dizendo: - Muito obrigado seu Zé, um dia eu lhe retribuo.
Pelo dizer de Zé, ele chegara a ficar até mais de uma hora submerso, sem qualquer equipamento de mergulho, entretido com o trabalho para soltar a fera do mar. Quando inquirido sobre como conseguira ficar tanto tempo sem respirar, Zé respondia com certa raiva: - E eu nem lembrava de respirar, de tão ocupado que eu estava! Se alguém apenas sugerisse que Zé estava aumentando a sua estória, ele logo invocava o testemunho do filho João: - É verdade ou não é, João? E João, coitado, para não desagradar ao pai, apenas balançava a cabeça confirmando a estória. João Sereno não gostava de falar.
Foi um dia triste na vida da cidadezinha pesqueira, Zé Mentira acabava de ser sepultado no cemitério local. Amanhecera morto e não se sabe a causa. A mulher disse que ao deitar-se, na noite anterior, Zé estava reclamando de dor no peito. Dormiu e não acordou.
À noite, a reunião na pracinha foi de tristeza geral. As estórias não tinham a menor graça. João Sereno continuava calado, apenas agradecendo os pêsames dos amigos. Agora tinha de enfrentar sozinho o trabalho que era partilhado com o pai. Naquele dia, ninguém pescou.
João acordou cedo, beijou a mãe e despediu-se, levando consigo apenas uma pequena marmita com peixe frito, batata e farinha de mandioca. Era a refeição para o dia inteiro. O tempo parecia ameaçador, com rajadas fortes oriundas do oceano. Lançou a jangada ao mar com certa dificuldade, pois as ondas estavam revoltas e balançavam muito a pequena embarcação. Por um momento lembrou-se do pai, mas logo dispersou a imagem do velho Zé, pois foi obrigado a mudar a posição da vela, em face de uma brusca mudança da direção do vento, que passou a soprar empurrando a leve jangada para dentro, para o alto mar, com uma força até então desconhecida de João, apesar de sua vivência com aquela atividade. Não demorou muito, João Sereno já estava bem longe da costa, em local muito além de onde deveria iniciar a sua pescaria.
O mar continuava revolto, bravio, e, mesmo sendo conhecedor das correntes marinhas naquele setor, João estava se sentindo inseguro diante da situação inusitada, porque as iniciativas para controlar a jangada, em ocasiões anteriores, sempre foram de seu velho pai. Pensou em retornar à praia, mas as tentativas foram vãs. O vento mudava a todo instante. Já estava ficando cansado e não conseguia conduzir a sua embarcação. Ficava praticamente girando em volta de um mesmo ponto.
O sol não aparecera, e o céu encoberto dificultava a orientação. Não conseguia comandar a vela efetivamente. De repente sentiu que estava à deriva, ora no topo de uma onda, a mais de dez metros de altura, ora na depressão, com ondas gigantescas ao seu redor. A situação era desesperadora. Pensava no seu pai. Lembrava-se da sua mãe. Recordava dos amigos. Pensou, inclusive, que aquilo fosse coisa do fantasma de seu pai para amedrontá-lo. Suas forças estavam se acabando. Decidiu não mais lutar contra as ondas e contra os ventos. Amarrou-se, deitado, na jangada e rezou, entregando sua alma a Deus. O mar cada vez piorava mais. – Acho que chegou a minha vez, – pensou, resignadamente.
João Sereno realmente se fazia merecedor do nome. Durante todo o tempo ficou tranquilo, sereno. Já era noite e não enxergava um palmo à frente do nariz. A escuridão agora dificultava ainda mais a situação. O mar bravio, o vento muito forte e não parecia que fosse melhorar tão cedo.
João acha que cochilou um pouco, tempo suficiente para não se dar conta de que a vela de sua jangada desaparecera, o que complicava mais, pois mesmo que o tempo melhorasse, não tinha como conduzir a sua jangada até a praia. Repentinamente, sentiu violento choque por baixo da embarcação, que parecia estabilizada e deslizando com maior rapidez. – Meu Deus, o que está ocorrendo? Será que eu vou morrer mesmo? - Murmurou. - Não se preocupe João! Eu vou lhe salvar, - ecoou uma voz forte, que superou todo o ruído das águas e dos ventos. – E quem é você? É Deus? , - perguntou João Sereno, agora todo arrepiado, com medo e não tão sereno. – Não, João, sou o tubarão que seu pai salvou há alguns anos e que desde aquele tempo eu tenho esse débito de gratidão com ele, respondeu aquele que transportava a jangada. – Então é verdadeira a estória que ele sempre contava e que ninguém acreditava, - pensou João, consternado e tomado de súbito remorso, porque ele próprio achava exagerada a estória do pai.
A velocidade da jangada era vertiginosa e logo João avistou luzes na praia. O mar agora estava calmo e já dava para observar, também, algumas estrelas no firmamento. – Pronto, João, daqui pra frente as ondas te levam, disse a voz, soltando a embarcação na superfície das pequenas ondas. João ainda vislumbrou o brilhante dorso do magnífico tubarão se afastando em direção ao alto mar.
Demorou pouco, João estava aportando na praia, onde sua mãe e amigos, de lamparinas nas mãos, aguardavam em vigília o retorno de João Sereno. Passava das três horas da manhã e muitos pescadores já se preparavam para iniciar o seu dia de trabalho no mar.
À noite, na pracinha, só quem falava era João Sereno, filho de Zé Mentira.