Amizade e Além

[Inspirado em um sonho real]

Uma das piores coisas do mundo é você querer e ter que dormir, e não ter sono. Você fica rolando na cama, fica olhando para o teto, fica lembrando do que fez no dia que se encerra, e fazendo planos para o dia que se inicia. Mas o sono, esse não vem. Você pensa em se levantar e comer alguma coisa, mas aí lembra que terá que escovar os dentes, preparar o lanche, comê-lo devagar para que não lhe faça mal. Pronto, desistiu de comer.

Pensa em ligar a televisão. Mas tem preguiça de se levantar. O tédio começa a tomar você. Fazer o que uma hora dessas? Nada, não há o que fazer; e você não pode fazer, afinal trabalhará na manhã seguinte. Pensa até em não dormir, e no dia seguinte dar uma desculpa convincente ao seu chefe, alegando estar com dor de cabeça e coisa e tal.

Mas para Joaquim as coisas não estavam fáceis. Tanto que ele não pregava os olhos de maneira alguma. Estava deitado de cabeça virada para a janela de seu quarto e estava fitando a lua cheia que iluminava seu rosto com uma luz suave. Sentia um aperto no peito, que não sabia explicar do que se tratava. Não queria levantar, estava cansado. E ao olhar para o relógio, não conseguia enxergar as horas devido a escuridão. Provavelmente já havia passado da meia noite.

Um estalo chamou a atenção dele. Parecia ter escutado alguma coisa. Mas provavelmente seria o sono chegando, pensou. Outra vez escutou algo, e teve a certeza de estar vindo da sala. Receou levantar-se. Se existia uma coisa que ele às vezes se arrependia, era de ter ido morar sozinho. Joaquim morria de medo de assombrações, e barulhos na madrugada, ou seriam ladrões, ou um fantasma. E ele sempre optava pela segunda opção.

Tomando uma coragem que não existia, se levantou e caminhou no escuro. Esticou-se para fora do quarto e observou o curto corredor. Estava escuro e os barulhos continuavam. A luz da lua iluminava apenas alguns centímetros à sua frente. A sala ficava no final do corredor, e o que quer que estivesse lá, estava mexendo nas coisas.

Pensou ser um ladrão e resolveu pegar seu taco de beisebol na gaveta de roupas. Nunca praticara o esporte, mas achava legal ter um taco em casa, isso o americanizaria. Se é que isso existe.

Caminhou lentamente pelo corredor escuro e chegou até a sala. Estava escura, mais do que o normal. Pode ver alguém de costas mexendo numa pilha de DVDs que havia alugado no dia anterior, e que não havia assistido nenhum ainda.

Aproximou-se mais um pouco. A pessoa estava sem blusa, vestindo um short coral e parecia sorrir ao ver cada DVD. Desastrado, Joaquim deixou que o taco batesse devagar no braço do sofá, fazendo um barulho seco, mas suficientemente audível.

-Caramba, Joaquim! Você continua com esse vício em filmes, né?- disse levantando um dos DVD’s.

-Quem é que está aí?- Perguntou o rapaz não se agüentando de medo. - Tenho um taco de beisebol, isso machuca muito!

A pessoa então se virou.

-Não acredito... - Sussurrou o rapaz sem acreditar no que via.

Involuntariamente Joaquim deu um passo para trás e deixou o taco cair.

-O que você está fazendo aqui?

-Estava de passagem. Resolvi ver o que você estava fazendo.

-Mas Fernando... Você está morto. Você morreu há...

-Dois anos... Vai fazer dois anos, eu sei. - Respondeu o rapaz se aproximando.

-Por favor, não chegue perto. Eu tenho maior medo disso. – pediu se afastando ainda mais.

Fernando parecia bem. Estava de cabelos cortados e usava um cavanhaque aparado. A única coisa que chamava a atenção de Joaquim era um pequeno corte abaixo do nariz, quase no lábio inferior do amigo. Exatamente o corte que chamara sua atenção no enterro.

-Medo de mim? Qual foi, Joaquim? Sou eu ainda, cara! Sou seu amigo! Sei que morri, foi muito esquisito. Bati com a moto, de repente tudo girou... Era como se meu corpo flutuasse... E eu não sentia dor.

-Nós ficamos muito abalados. Que forma de morrer, cara! Mas e como você está? Porque apareceu para mim? Sou sensitivo?

Fernando sorriu.

-Eu estou bem. E você também. Pare de se preocupar à toa. Ninguém vai lhe fazer mal. Cuide-se e tudo vai estar bem. E por favor, avisa pra minha mãe que estou legal.

-Pode deixar. Ela apesar de aparentar estar tranquila, sofre muito.

-Eu sei. E no meu enterro ela não chorava. Achei que ela não estivesse triste até sentir o que ela sentia.

-E como é?

-O quê, Joaquim?

-Como é morrer? O que acontece quando acaba?

Fernando sumiu.

Joaquim acordou.

Estava de manhã e algumas gotas de chuva caiam sobre sua testa. Levantou-se assustado e correu para a sala. Os DVDs estavam lá, exatamente como no sonho. A imagem de Fernando não lhe saía da cabeça. Tudo havia sido muito real. As coisas que ele falara, a maneira como as falou. Mesmo que num sonho, Fernando parecia estar ali.

Todos lamentaram sua morte. Jovem, acidente de moto. Um rapaz brincalhão e que tinha muitos amigos. Joaquim ficou dois dias pensando no sonho e comentou com diversas pessoas. Alguns o mandavam acender velas, outros rezar por ele. Outros diziam que era apenas um sonho. E alguns diziam que ele poderia não estar bem, afinal, se estivesse o tal corte na boca não estaria lá.

Ao contar no dia seguinte para o melhor amigo de Fernando sobre o sonho, se surpreendeu ainda mais ao saber que ele sofrera o acidente usando um short coral, exatamente como o que aparecera. Joaquim não havia o visto na hora do acidente, e acreditou que no sonho, Fernando poderia estar se despedindo.

O rapaz nunca mais tivera medo de assombrações, e toda segunda-feira, ia até a igreja e rezava pelo seu amigo, que onde quer que estivesse, voltou para dar um último adeus.

FIM

Em memória de Fernando Ferreira da Silva.

Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 22/03/2011
Código do texto: T2864845
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