O Caso do Bobolhô
I
Vou iniciar essa narrativa esclarecendo o leitor acerca do significado do termo “bobolhô”. Este nada mais é do que a junção infantil das palavras bobo e olhou. Daí, bobolhô. Ou bobo olhou, se quiserem.
E bobolhô nada mais é do que uma brincadeira que tínhamos na época em que eu e parte da minha geração éramos moleques, ali por volta dos nossos nove ou dez anos de idade.
Vou explicar como funcionava a brincadeira: você apontava para uma direção, lugar ou pessoa que supostamente se achava próxima daquela a quem queríamos “pregar” a peça. Então dizíamos algo assim:
- Olha que legal! Nossa, é muito interessante...! Olha lá...
Quando a pessoa olhava na direção apontada, começávamos a rir e a gritar em alto e bom som para que todos os colegas ouvissem e rissem conosco:
- Bobolhô, bobolhô...
Era mais ou menos assim, suportando – é claro - algumas variáveis. Entretanto, suponho que resquícios desse jogo infantil permaneçam às vezes na personalidade ou no caráter das pessoas, mesmo depois delas se terem tornado adultas.
É exatamente isso o que vamos ver nesse caso.
II
Ninguém me contou essa história. De certo modo aconteceu comigo mesmo na época em que eu era balconista na 3ª. Vara do Trabalho de Belo Horizonte. Naquele tempo os servidores do balcão sempre se encontravam assoberbados de trabalho, bem ao contrário do que pensa ou imagina a maior parte dos nossos amigos e parentes.
Houve épocas em que tínhamos tanto serviço que - além de atender o público com presteza e eficiência no balcão da Secretaria – devíamos ainda colaborar com os colegas em muitos outros afazeres como, por exemplo, abrir o malote, dar baixa nos mandados vindos da Diretoria da Secretaria de Mandados Judiciais, etc.
Pois foi então num desses belos dias que – ao proceder à baixa dos referidos mandados – encontrei uma interessante certidão rascunhada por um oficial de justiça. Ainda que aquele documento fosse de fato apenas uma certidão e guardasse especificamente a função de informar ao Juízo acerca dos fatos acontecidos no cumprimento daquele referido mandado, a forma e o conteúdo daquele texto apresentavam aspectos dignos e curiosos e acabaram chamando a minha atenção.
Vou procurar reproduzir o que vi registrado na certidão daquele Oficial de Justiça, ainda que compreenda perfeitamente que me falta a graça e a elegância observadas no estilo daquele servidor.
III
“Certifico e dou fé que em cumprimento ao r. mandado, compareci ao endereço nele indicado. Chegando à residência do reclamado, permaneci por algum tempo nas suas imediações na esperança de ser atendido ou de presenciar a chegada do indivíduo em questão, o senhor Benedito da Silva.
Em várias ocasiões e em horários distintos, dirigi-me até os portões da vistosa residência e pressionei a campainha sem que tivesse obtido nisso qualquer resposta. Entretanto - num determinado momento da tarde – vejo a porta da casa se abrir e um homem encaminhar-se apressado até as grades do portão. Dirijo-me imediatamente ao seu encontro e me apresento:
- Sou o Fulano de Tal, Oficial de Justiça do Tribunal Regional do Trabalho e estou aqui para proceder à entrega do presente Mandado de Citação ao senhor Benedito da Silva. Ele está?
Percebo que o homem se retrai um pouco. Imagino que ele não esperava encontrar um oficial de justiça naquela hora um tanto tardia. Mesmo assim o sujeito se mantém firme: tomou o mandado entre as mãos e pôs-se a lê-lo. Porém, logo que chegou ao trecho em que aparece expresso o nome do executado, ele imediatamente suspendeu a sua leitura e declarou o seguinte:
- Acho que o senhor cometeu um engano. O mesmo engano, aliás, que vem cometendo a maior parte dos oficiais de justiça que até aqui se dirigem. Este mandado deve ser entregue ao meu pai, o Sr. Benedito da Silva, que é um dos sócios-proprietários da empresa “Abracadabra Comércio de Mágicas S.A”. Eu também sou Benedito, mas Benedito da Silva Filho. Entretanto – disse ele acenando em direção a uma pessoa que supostamente se encontrava as minhas costas e que vinha caminhando em nossa direção – meu pai vem vindo logo ali. É aquele senhor grisalho e vestido com uma calça azul e uma camisa listrada. Sendo assim o senhor pode entregar o mandado diretamente a ele.
Olhei para trás e constatei de fato a presença de um homem de calça azul e blusa listrada caminhando lentamente pelo passeio público e acenando igualmente em nossa direção. Agradeci ao senhor Benedito Filho e me encaminhei na direção de seu pai.
Entretanto, ao me aproximar e me identificar ao sujeito, este se mostrou muito surpreso e um tanto assustado. Tirou imediatamente do bolso o seu documento de identidade e me afiançou ser o senhor Fulano de Tal. Confirmou ainda ser vizinho do senhor Benedito da Silva, exatamente aquele homem com quem eu estivera conversando há pouco e que lhe acenara à distância.
Compreendi naquele momento tudo o que me acontecera: eu havia sido enganado por aquele sujeito. Quando olhei para trás na vã esperança de ainda ter ao meu alcance o verdadeiro Benedito da Silva, o indivíduo havia desaparecido sem deixar vestígios.
Diante do exposto, devolvo o mandado à origem para novas considerações. Belo Horizonte, 15 de julho de..., Fulano de Tal, Oficial de Justiça”.
IV
Foram essas as palavras que eu li na certidão daquele Oficial de Justiça. Fica registrada aqui a nossa homenagem a todos os oficiais e oficialas de justiça que – como modernos Robin Hood’s – suportam a difícil tarefa de realizar na Terra um pouco daquilo que talvez só venhamos a encontrar de fato no Céu: a justiça e a igualdade entre os homens!