QUILOMBO SUÇUARANA
Quilombo Suçuarana.
Guel Brasil.
Era uma noite de lua cheia, de um clarear tão intenso, que dava pra se ver qualquer coisa que se quisesse no chão do terreiro da nossa humilde tapera.
Um aglomerado de oito casas, todas feitas de enchimento e coberta com folhas de coco palmeira; muitas crianças, umas maiores outras menores, e quando a noite era convidativa, todas vinham para o grande terreiro brincar de roda: Ciranda, fura-bolo, demaré, e roda-pinhão. E como não tínhamos controle do tempo, se alguém não nos alertasse ficávamos ali a noite inteira.
Era sempre assim nas noites de lua cheia.No centro do grande terreiro tinha uma paiada, e ali se guardava de um tudo: Um grande pilão de três bocas que se usava na pila de café, pra tirar a palha do arroz, transformar milho em fubá e muitas outras utilidades.
O pé direito, de altura mediana, com duas águas, tinha no centro da cumeeira um varão, onde se colocavam as cangalhas, celas, e outras traias utilizadas no nosso dia-a-dia.
Muitos adultos, entre homens e mulheres dava pra se contar mais de vinte, e da maioria deles eu me lembro ainda; e como vieram de várias senzalas, uns eram parentes entre si, outros não.
Negros, todos negros ou afro-descendentes, que traziam em seus corpos fortes e musculosos, a marca dos grilhões e das chibatas dos coronéis. Foram chegando aqui aos poucos, constituíram famílias e fortaleceram o quilombo.
O lugar que os nossos antepassados escolheram era muito bonito; era um baixio de serra com terra fértil, muita água, onde tudo que se plantava se colhia com fartura, e a proteção era natural.
Foi aqui nesse quilombo que eu nasci em 1948, cresci juntamente com outras crianças. Aqui também, vi meus avós e meus pais morrerem, constitui a minha família, e vi meus filhos crescerem.
Com alforria ou sem alforria, nós já não éramos mais escravos de ninguém. Éramos escravos da pobreza, do desamor e da desigualdade social. Hoje já estou velho, cansado, por certo morrerei esperando mudanças, e meus filhos estão trilhando pelo mesmo caminho.
No dia l3 de Maio de 1888, veio a nossa tão sonhada liberdade.
Ficaram livres do ônus da escravidão, mas não nos deram nada, absolutamente nada; saímos com uma carta de alforria nas mãos, vestidos apenas e tão-somente com a roupa do corpo, se é que se pode chamar aquilo de roupa. Foi um abandono, uma liberdade formal; fomos entregues à nossa própria sorte, sem termos direito sequer a um palmo de terras de onde pudéssemos tirar o nosso sustento.
Ainda assim somos agradecidos, e vamos continuar lutando por dias melhores para nossos filhos, nossos netos e tataranetos, até que o ultimo negro seja libertado de fato e de direito. E quando predominar a negritude no Brasil e no mundo, seremos ainda mais agradecidos.
Essa é a minha história. Diziam que era forte como um Deus e ágil como um tigre; deram-me o nome de SUÇUARANA, e esse é o meu QUILOMBO. (Conto publicado na décima primeira edição do livro Eldorado, através do Celeiro de Escritores.)