DENTRO DE UMA CAIXA*

Nem o repórter que fez a matéria e nem o apresentador do popular programa policial explicitaram o tipo de caixa dentro da qual a recém-nascida foi abandonada. No primeiro momento da reportagem, ficou apenas claro que a criancinha – hoje mulher feita, falando ao microfone da tevê com certa desenvoltura e contando com seus trinta e seis anos – fora encontrada dentro de uma caixa.

O bebê do sexo feminino foi deixado – quem sabe se pela própria mãe – em uma movimentada avenida que nasce na Praça da Catedral. A via dá acesso a conhecidas praias de Fortaleza; praias justamente as mais em evidência pela mídia e por turistas, já por serem recantos aprazíveis e orlados por muitos hotéis de luxo, restaurantes, boates e clubes elegantes. Lá é onde se queda a badaladíssima Beira-Mar.

A avenida do achado na caixa é uma artéria inclinada, sem muita graça e sem casas residenciais ou blocos de apartamentos em seu bojo. Apenas, como ainda hoje, lá se situam o quartel da 10ª Região Militar, em um elevado, e do lado oposto o Mercado Central. Um pouco mais embaixo, há um viaduto da Leste-Oeste que corta a citada avenida e também muitos armazéns, na verdade depósitos de grandes lojas.

De boas feições, a senhora loquaz tinha lágrimas a lhe escorrerem pelo rosto. Todavia ela esboçava eloquência e sorriso fácil e afável, ao pronunciar-se com muita segurança e convicção:

“– Eu não tenho mágoa nenhuma de minha mãe biológica; só quero é encontrá-la e saber por que ela fez isso comigo.”

Sem subterfúgio algum, pois de cara limpa, Ana Cláudia previamente havia repassado as informações do acontecido para o repórter, que se esmerava para tornar-se explícito em sua tarefa de homem da informação.

Ana Cláudia era promotora de vendas. E não mulher de todo feia, ainda conservando aparente otimismo, apesar das lágrimas compridas que se lhe esfiapavam pelas faces. Completava redondamente trinta e seis janeiros e fora abandonada pela mãe. Mas teria sido a mãe, de verdade, que a levou numa caixa até a Av. Alberto Nepomuceno?

Uma senhora simples da comunidade humilde, localizada à orla marítima, favela que ainda sobrevivia na zona emergente, mas com vistas a virar área médio-burguesa, foi quem adotou a inocente criança, abandonada pelos seus. E a bondosa alma que adotou a guriazinha era mulher de um pescador, ali daquela modesta faixa litorânea.

Ana Cláudia, feito um papagaio falante, quase e engolir o microfone da reportagem, só implorava que sua mãe se revelasse. Ela, a criança deixada numa caixa, agora queria era saber da mãe verdadeira, que a sua mãe adotiva já não estava mais no mundo dos viventes.

“– Quero descobrir quem é a minha mãe biológica. Eu estou bem, agora, graças a Deus. Tenho dois filhos maravilhosos e trabalho de manhã à noite para lhes dar o sustento. Não tenho nenhum rancor à minha mãe legítima. Só desejo saber por que ela fez isso comigo!” – expressava-se a mulher, em um português razoável.

Pelo que sei do á-bê-cê da vida, o cantor e compositor Milton Nascimento também é filho de criação. Uma família mineira o adotou e ele ficou famoso, uma celebridade; até ganhou um Grammy nos Estados Unidos. Se tivesse ficado no morro carioca, lá aonde veio ao mundo, só Deus sabe o que hoje ele seria na vida. Mas o Milton não foi deixado numa caixinha, não. Ele foi adotado, tudo direito, e suponho que pelos trâmites legais e pela porta da frente.

Já a Ana Cláudia não teve igual destino. Esta, ainda novinha, fora jogada ao deus-dará. E dentro de uma caixa marruá, sei lá se de papelão, não se sabe nem de quê.

Uma reflexão, agora, muito simples: tresloucado gesto de um sujeito que se mete a ter que engendrar uma criança, mas também imbecil e subumana a atitude de uma mulher, quando concebe um feto, sem lhe terem como dar um rumo digno, no amanhã, o mais minimamente caminho digno. E, pior, mil vezes deplorável, sob todos os pontos de vista, a atitude irresponsável de uma mãe e/ou dos pais que vão lá ao beco e “desovam” um nenê, a céu-aberto, numa via movimentada e central de uma urbe qualquer.

Desculpem se estou sendo fundamentalista, muito radical.

O caso – eu irei chamá-lo de ‘causo’ – da senhorinha Ana Cláudia, de trinta e seis primaveras, promotora de vendas, “dois filhos maravilhosos”, lágrimas nos olhos e sem mágoa da mãe que a deixou ao relento, ainda quando ela era recém-nascida, me deixou comovido que só o diacho. Sou e serei um sentimental.

Enfim..., E se a menina Ana Cláudia tivesse se transformado numa diva do mundo artístico, do tipo Beyoncé, então da marca da Bruna Surfistinha, ou ao menos certa musa de uma grande escola de samba, hein? Por favor, me norteiem nestas dúvidas! Uma cabeça oca, meu povo, nunca saberá medir o amanhã e seus desdobramentos. Jamais saberá!

Fort., 09/03/2011.

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(*) Por uma questão de justiça, devo citar a

fonte que me forneceu este ‘causo’ da vida

real. Era avesso à crônica policial, mas o fabu-

loso crescimento da violência no País me faz

ver mais televisão, a fim de poder ler as caras

que desfilam em tais programas. O caso da

Ana Cláudia foi visto por todos na TV Janga-

deiro, de Fortaleza, filiada ao SBT, na edição

de ontem, 08 de março. O programa BARRA

PESADA tem no comando o comunicador No-

nato Albuquerque, que o conduz por longos e

longos anos de sucesso.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 09/03/2011
Reeditado em 09/03/2011
Código do texto: T2837129
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