A Menina Mézinha e o Italianinho Bigodudo

Essa história não aconteceu em um reino distante. Não tem príncipe à moda conto de fadas e tenho quase certeza que, se tem cavalo, não é um puro-sangue branco. É uma dessas histórias que se passam no interior do Brasil, com uma Maria e um italianinho bigodudo de zóio azú. Eu apontaria a semelhança com a história da gata borralheira, mas é um tanto estranho e Freudiano chamar vovó de gata. Para manter-me longe deste enfoque ressaltaremos apenas a semelhança com a história da Cinderela. Assim como na história das fadas matracas, nossa heroína no princípio não era ainda e de fato uma ‘Maria’, era uma criança, sem televisão, sem internet, sem livros de histórias, sem fadas e sem príncipe. Mas nossa pequena Maria Salomé tinha mãe, e isso fazia dela a menina mais feliz do vilarejo de Porecatu.

Dona Joana, era linda como toda mãe, amorosa como toda mãe, mãe como toda mãe. Já tinha uma constelação de Marias, é verdade. Maria Dolores, Maria Fabiane, Maria do Amparo, as três marias iluminavam a casa, abrilhantavam o vilarejo e aqueciam o coração de D. Joana, do pai, seu João, e de seus maridos. Havia também o filho varão, Vicente, como o santo que fora exemplo de fé e força.

Em 1939 D. Joana e seu João tiveram uma bela surpresa. Foram abençoados com uma gravidez, fato que nos dias de hoje nem sempre é considerado bom, então fiquem atentos à história, jovens e tentem aprender algo. Meses depois veio ao mundo a quarta maria. Maria Salomé Rocha e seus olhos castanhos amendoados vieram encantar a família toda no primeiro mês de 1940.

Durante alguns anos, Mézinha foi princesinha, alegria da casa humilde, porém aconchegante e afetuosa. Mas os dias passam e o mundo nem sempre gira a nosso favor, mesmo isso sendo absurdamente cruel quando se trata de uma criança. D. Joana veio a falecer deixando sua pequena com o pai. Roga o ditado que pai é pai, não é padrasto, mas pai nunca vai ser mãe. Seu João era um trabalhador, desses que saem antes do sol nascer e só voltam após o poente, e por mais amoroso que fosse logo precisaria de uma companheira para cuidar de si, de sua filha e seus interesses.

Como suposto, seu João arrumou uma esposa, que definitivamente não assumiu o papel de mãe da nossa estrelinha. A malvada, como Mézinha apelidou a mulher, não precisa de muitas outras apresentações. Era madrasta de corpo, alma e prefixo. Bastou que seu João tivesse um derrame e ficasse debilitado para que a Malvada começasse a explorar Mézinha. A mulher não tinha carinho nem respeito pela pequena e a fazia de empregada da casa, serviço árduo quando nem se completou oito anos de idade. Ao contrário das histórias encantadas nenhuma fada apareceu para salvar a menina. A única novidade que o vento trouxe foi uma ira extra que fez a mulher de seu pai expulsa-la de sua casa. O fato é que a constelação já estava completa e nossa pequenina não poderia brilhar, não tão cedo.

Sozinha pela galáxia, Mézinha começou a trabalhar em várias residências como doméstica e babá para tirar seu sustento e assim foi até seus 13 anos, quando mudo-se para a cidade de Santa Amélia para trabalhar na casa de sua irmã Dola, Maria Dolores, em troca de abrigo. O poeta que reclamava que na cidadezinha qualquer a vida era besta e as janelas olhavam, provavelmente não conhecia a vida de Mézinha, a infância e os sonhos surrupiados, os maltratos, o abandono, o descaso. A inocência da menina dos longos cabelos negros e cacheados que tinha nome bíblico e já vivia seu martírio tão jovem.

Agarrada a sua fé, Mézinha passou mais dois anos de trabalho duro porém costumeiro, sabendo que as coisas já estiveram piores mas encontrando-se distante de seus sonhos. Mal sabia que a sorte estava a seu favor a partir dali. Ao completar 15 anos fez-se bela moça e em uma tarde assustadoramente comum, numa de suas rotineiras visitas ao armazém de Secos e Molhados, conheceu o jovem e bonito príncipe, digo, gerente, Nelson. Um italianinho magro, de bigode fino e olhos claros.

Então Mézinha brilhou. Brilhou como se fosse o primeiro raio de sol a tocar a terra após a criação. Ofuscou o jovem, que sentia poder passear pelo seu olhar pelo resto da vida. Mas Nelson não a convidou para sair, não pediu para ficar com ela, nem a chamou de “sua linda” – Eram outros tempos, crianças.

No auge de seus 20 anos, chapéu de feltro e calça combinando e cara de galã de filme de época, aguardava ansioso pelas visitas da moça, que parecia flutuar pelas ruas cinzas da pequena cidade. Quando chegava, a moça trazia em tese apenas os anseios alimentícios da família de sua irmã, mas para o moço, trazia o universo.

Ao som do rádio cantarolava com Silvio Caldas: ”A Deusa da minha rua tem os olhos onde a lua,/Costuma se embriagar, / Nos seus olhos eu suponho que o sol num dourado sonho, / Vai claridade buscar...”

Mézinha entregava a lista de compras com um sorriso tímido, Nelson com toda postura e charme dava a lista ao empregado e pedia para a moça aguardar. Com o tempo começaram a conversar sobre aquelas aleatoriedades que transpõem gerações:

– E esse tempo, hein? - Observava o rapaz.

– Pois é, com essa chuva a roupa não seca. - Completava, tímida.

– Terrível! – Arrematava vovô.

Não sei exatamente quando a resposta dele deixou de ser uma afirmação retórica e passou a ser um gracejo:

– Então gastas essas più bellas mãozinhas lavando roupas?

Mézinha começou a contar suas desventuras para o italiano atencioso e doce, que dava-lhe um sorriso-ergue-bigode que valia o dia, a semana, a existência. Ela definitivamente não estava acostumada com tanto carinho.

Durante um ano inteiro Nelson aguardava a visita da moça para oferecer sua paquera elaborada e aguardava sua saída para cantar alto acenando com o chapéu: ”Minha rua é sem graça, / Mas quando por ela passa, /Teu vulto que me seduz, / A ruazinha modesta, / É uma paisagem de festa, / É uma cascata de luz!”.

Casaram-se. – Ninguém resiste a Silvio Caldas. Mézinha virou a senhora Maria Salomé Inforzato. O jovem, filho de imigrantes, tratava a moça como uma verdadeira princesa. Cuidava dela como ninguém há muito o fazia, causando-lhe a mais profunda admiração. Nelson tornara-se um homem completo, o mais feliz dos que conheci. Foram morar em um "ninho de amor" alugado até que a sua própria casa fosse construída no terreno que o rapaz ganhara do pai. Logo o marido dedicado tornaria-se sócio do armazém e de um pequeno cinema.

Nelson trabalhava no armazém, Mézinha na tabacaria do cinema. Esforçavam-se, mas valia muito a pena, principalmente porque logo vieram os frutos de seu amor: Zuleide, Valentim, Eloiza e Rose que ficavam no cinema comendo balas e assistindo aos filmes do Tarzan e Mazaroppi. Tinham construído uma família firmada no amor e no respeito e isso era a maior recompensa que podiam receber. Quando tinha um tempinho, nossa heroína ficava no cinema vendo os contos de fadas. A tela gigante reproduzia as desventuras que sofrera e ela, que sentia-se especialmente satisfeita de ter alcançado a felicidade sem fada alguma, via, ali na sala escura, como venceu o universo que nunca conspirava a seu favor. Na película e nas risadas de suas crianças conferia a realização de sonhos que nem ousou ter. Era brasileira, era mulher, era estrela, era mãe, era Maria, rainha de seu lar.

A história poderia acabar nessa epifania, mas então não chegaríamos a contar que Paulinho nasceu para provocar o ciúme da irmã mais velha, que juro, queria dar o menino para os ciganos. De qualquer forma não chegaremos nessa parte. O fato é que Mézinha não vivia em um romance inglês e sua história não acabou aqui. Sua história segue por aventuras e decepções, coragem para recomeçar ao lado de seu amado durante muitos anos. Passa por suas bodas de ouro, por seus netos e bisnetos. Continua por cada comida feita com carinho, cada bronca e cada cafezinho. Sua história é a fé que trouxe de criança até a novena que fez há pouco para eu arranjar outro emprego. (Funcionou!). Sua história é a minha sendo germinada naquele armazém há mais de meio século atrás. Sua história sou eu.

Camila Mossi de Quadros e Kakal Ragazzi

Camila Mossi
Enviado por Camila Mossi em 07/03/2011
Código do texto: T2832701
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