O VIOLEIRO SOLITÁRIO
O VIOLEIRO SOLITÁRIO
Depois de sua habitual caminhada matinal, acompanhado de seu fiel cachorro, o Sr. Luis, rapidamente retornou a casa porque o sol já se apontava e significava que a vida naquela cidade começaria a funcionar. Ele não suportava ver gente perto dele. Era um homem muito magro, sem algumas peças dentais, aposentado do trabalho e da vida. Sua casa consistia num quarto com banheiro no meio de um quintal.
Entrou a casa, agarrou seu violão, começou a afiná-lo, mexeu aqui, ali, din-don-din e tudo pronto para começar. Escutou um barulho que vinha lá de fora. Deixou de tocar o violão e fez um sinal com as mãos para que o cão fosse dar uma observada. Nada, tudo estava em ordem, não havia ninguém.
Com um gargarejo feito com uns bons goles de aguardente, preparou-se para sua interpretação e olhou ao teto, dizendo:
- Oh, Zequinha de Abreu, psiu! Nessa você tem que me acompanhar!
Começou a interpretar: "Um tico-tico só, O tico-tico lá, está comendo todo, todo, meu fubá...”
O que o senhor Luis não se imaginava, é que, do lado de fora, como todos os dias, já estavam todos com seus ouvidos postos na porta para poder escutá-lo. Eles adoravam suas interpretações de samba, chorinho e outros gêneros, mas para desfrutar de sua música, precisava que o silêncio fosse absoluto. Aquele velho não gostava de compartilhá-la com ninguém. O cachorro, como tinha faro, se dirigiu até a porta do quarto e começou com a ladraria. Foi um Deus-nos-acuda:
- Saia daqui cambada de gente que não tem o que fazer na vida!- exclamou seu Luis, abrindo a porta abruptamente e jogando um baita balde de água em toda a turma.
Todos os dias eram iguais. Voltava de seu passeio e se fusionava ao violão. Não se podia ver quem era o homem quem era o objeto, era tudo uma coisa só. Como sempre, seus bons goles de aguardente, dedos preparados para o dedilhado e começou: “Meu coração, não sei por que, bate feliz, quando te vê, e os meus olhos ficam sorrindo...” e como todos os dias, lá estavam todos eles, escutando-o, e seu Luis, sempre mal humorado e enfezado, saia molhando todo mundo.
Sua vida girava em torno daquele violão e de suas discussões eternas e diárias com Deus:
- Para que você me pôs nesse mundo? Para que? Não tenho dinheiro, não tenho família, passo meus dias espantando essa gente daí de fora que o único que planejam é entrar aqui para roubar minhas coisas. E porque eu estou falando isso tudo se você nem existe? E vê se não encha meu saco porque você só aparece pra me enfiar na cara meus pecados. Eu quero mesmo é que o diabo me carregue!
Certa vez, quando todos estavam ali, esperando-o para que começasse sua cantarola, alguns opinaram:
- Será que hoje ele vai tocar samba ou chorinho?
- Não sei, mas faz tempo que ele não toca aquela música bonita, romântica “você é isso estrela matutina, luz que descortina um mundo encantador, você é isso, é parto de ternura, lágrima que é pura, paz no meu amor...”
- Psiu! Silêncio! Parece que já vai começar...
Lá de dentro se escutou: “O Chalana sem querer, tu aumentas minha dor, dessas águas tão serenas vai levando meu amor...”.
- Ah, sinto muito minha gente, essa música vou cantar com ele. - disse dona Rosa.
- Pelo amor de Deus, dona Rosa, não faça isso! Seu Luis vai jogar água fervendo dessa vez!- exclamou um deles.
Não teve jeito. A dona Rosa gostava muito dessa moda de viola e não pôde segurar a alma dentro do corpo. Lá de dentro se podia escutar seu Luis, tocando e cantando bonito, e do lado de fora, dona Rosa com sua voz suave, num lindo dueto, como se eles se conhecessem e tivessem ensaiado aquela canção por mais de 45 anos.
Numa certa manhã o Sr. Luis não saiu para realizar suas caminhadas matinais. Todos se preocuparam. Aquele senhor era doente, problemas no coração, hipertensão e decidiram que o melhor era botar a porta abaixo. Seu Luis estava em sua cama, deitado, violão do lado e um esboço de que partiu cantando “se eu perder esse trem, que sai agora às onze horas, só amanhã de manhã...”.
No seu velório não havia muitas pessoas: o padre, seis filhos, 3 noras, 2 genros, oito netos, dois irmãos (era de família muito grande más fazia anos que ninguém o visitava) e a Sra. Rosa, sua esposa. Seus familiares pediram ao padre que enfatizasse em sua oração que Deus o levasse com ele, por se acaso o outro lá debaixo levasse a sério aquela história “que o diabo me carregue”.
O Sr. Luis era muito doente. Passou a vida sem aceitar receber tratamento médico para seus problemas psiquiátricos e adição ao álcool. Viveu submergido numa introspecção que o impediu de ter uma convivência saudável com sua família. Seu quarto era uma verdadeira fortaleza, ninguém podia entrar. Depois de seu falecimento, ao entrarem em sua habitação, se encontraram com o que já esperavam: muita sujeira, objetos inservíveis, e uma caixa de sapatos repleta de dinheiro, sem nenhum valor, dada as mudanças da moeda.
Seu Luis, apesar de seus desequilíbrios mentais, tocava seu violão com tanta paixão que parecera ser uma pessoa normal. Na verdade, essa foi a única coisa que seus filhos, netos e esposa puderam conhecer de positivo nele. Sua família optou por deixar seu violão pendurado na sala, como lembrança de algo que ele fez de bom nessa vida.
Como cidade pequena as comadres nunca deixam de realizar seus comentários, dizem por aí, que naquela casa, todas as manhãs se escuta uma verdadeira bagunça. Seu Luis se junta com todos aqueles bons para a boemia, Nelson Gonçalves, Pixinguinha, Noel Rosa, Zequinha de Abreu e ficam tocando seus sambas e seus choros. Depois, quando a cachaça já fez seu efeito, ficam todos abraçados, em coro, cantando: “Esses moços, pobres moços, a se soubessem o que eu sei, não amavam, não passavam, aquilo que eu já passei...”
Nota: Em memória do S. Luis e dedicado a sua família.
Músicas mencionadas neste texto (autores, porque interpretes, há muitos)
Tico-tico no fubá/ Zequinha de Abreu
Carinhoso / Pixinguinha
Paz do meu amor/ Luiz Flávio Vieira
Chalana / Mario Zan, Arlindo Pinto
Trem das onze/Demônios da garoa
Esses moços / Lupicinio Rodriguez