Medo de assombração
Era uma vez........ Bem. Não sei se causo de assombração pode começar assim. No entanto, faz tempo demais que ouvi este causo. Em todo caso, nem sei se vou contá-lo tim-tim- por tim-tim, do jeito que o ouvi........ Lembro que ficávamos no quintal de casa, beirando as roupas estendidas no chão pra quarar. Éramos quatro crianças, umas mais arteiras, outras mais acomodadas. Contar causos de assombração, de aparição era a prática que a lavadeira, dona Alzira, usava para sossegar “os meninos”, pra que não pisassem nas roupas que estavam quarando.
Primeiro, ela tirava da boca uma trouxinha de fumo que tinha o costume de mascar. Depois, soltava um cuspe comprido, como se movido por um elástico e que nunca conseguíamos imitar. Então, dizia que podia ser que, naquele dia, contasse alguns casos repetidos, que as lembranças dela às vezes ficavam meio perdidas naquele tal de ensaboar, esfregar, botar pra quarar, enxaguar, torcer, dependurar, de domingo a sábado, de janeiro a dezembro. Ninguém ligava pra causo repetido. Sabíamos que, a cada conto, ela aumentava um ponto, trocava os nomes, mudava o cenário, com o cuidado de afirmar, que era causo acontecido. Para nós, era sempre um novo causo.
Esse causo que estou lembrando agora, teve até mais de uma versão, sei. O nome do menino, coroinha da igreja lá da Onça, podia ser Toninho. Era miúdo, franzino, órfão de pai, que precisava trabalhar pra ajudar a mãe nas despesas da casa. Não tinha corpo ainda pro trabalho pesado na roça, que naquele tempo, trabalho pra homem era só na roça. O padre, então, ofereceu a ele um serviço mais leve, de lavar todo o vasilhame da casa paroquial na parte da tarde. Ele podia ajudar a fazer a sopa, cascar as batatas, picar os retalhos de carne. Isso, antes de lavar as vasilhas. E ainda podia jantar e levar a sobra pra família. Pra eles era uma boa ajuda. Se não fosse o medo que Toninho tinha de alma penada!
Ele acabava o serviço pelas sete e meia da noite. As ruas lá da Onça eram um breu só. Podia ter um poste nas esquinas, daquelas lâmpadas que clareavam quase nada. Perigo, de gente, não havia nenhum. Se não tivesse que passar beirando a cerca do cemitério, até que não seria dúvida pro coroinha, que naquele tempo, o povo todo tinha de costume andar na escuridão. Toda noite, ao sair depois do trabalho, Toninho pendurava o terço no pescoço e ia rezando pros santos todos que havia na igreja, agarrava com N.Sra. Aparecida, Santo Antônio seu padroeiro, fazia o nome do pai três vezes e levava na capanga sua marmitinha com as sobras da janta para a mãe e os irmãos. Nessa hora, já sentia os cabelos arrepiados, uma friagem correndo pela espinha. Queria muito que tivesse outro caminho por onde passar... Não podia rejeitar a marmita. Nem podia contar ao padre que tinha aquele medo. Não teria ele fé em Deus, não estaria ele gostando de ter aquele serviço? Podia o padre desconfiar. Tinha que se arriscar a topar com algum assombração.
Uma noite, teve que ensebar as canelas. Saiu na maior disparada quando viu alguma coisa branca, esticada de comprido, mexendo perto do portão de grade. Quase chegando em casa, deu um tropicão e a janta da família voou longe. Depois desse dia, o vulto branco aparecia de vez em quando. Alguns dias depois, a aparição começou a amiudar. Teve um dia, que o vulto falou “Toniiiiiiinho. Toniiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiinho”! Deus do céu! Se ele tivesse as pernas mais compridas........ Nesse dia, o menino precisou largar a marmita pra correr. Os irmãos tinham que entender... Se não tivessem nenhuma farinha pra fazer um engrossado, iriam dormir com fome. Fazer o quê? Era o medo demais. Tinha fé na Virgem, no seu santo protetor, isso ele tinha. Mas aqueles santos ficavam quietinhos lá na igreja, nunca nenhum falou “Toniiiiiiiinho”, nem balangou as roupas. Era cada qual no seu canto, recebendo suas flores, esmolas. Nem tocavam nas esmolas que deixavam lá.
Saber que os irmãos tinham dormido com fome naquela noite, deu coragem ao coroinha. Sem comentar o que estava acontecendo quando ele passava perto do cemitério, o menino já havia conversado com a mãe, com alguns companheiros de escola. Ninguém, nunca, tinha visto algum vulto beirando o cemitério. Já haviam ouvido alguém contar, mas visto, enxergado, ouvido vozes! ........ Isso não. A não ser algumas chamas tremulantes, coisa que era de comum mesmo, nos cemitérios......
Toninho resolveu enfrentar a alma penada. Nesse dia, ao sair da casa paroquial, ele pegou uma batina surrada que o padre não usava mais e a vestiu por cima da roupa. Escondeu a capanga com a marmita por debaixo da batina. Pegou um cordão e ajustou a batina na cintura pra não ficar arrastando. Passou borra de café nos pés, nos braços, mãos e rosto. Ficou escuro como a noite. Queria ele ver se a aparição ia dar com ele no meio da escuridão. Segurou na cruz do terço e apertou os passos quando beirava a cerca do cemitério. A alma penada estava lá no mesmo lugar. Dessa vez ele não correu. E, ao invés de ouvir “Toniiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiinho”, escutou uma voz que parecia vinda do além, “menino, você........ tão pequeno........ não tem medo........ de assombração?” Ele não perdeu tempo e disse “Não sou deste mundo, dona! De vez em quando, volto aqui na minha última morada. Só gente deste mundo tem medo de alma penada, de assombração........”
“Podem acreditar” ia dizendo dona Alzira, quando percebia que estávamos de olhos arregados. “Se ninguém nunca lhe contou isso antes, podem acreditar......... O vulto branco saiu numa carreira, mas numa carreira.” Nesse momento, acontecia um certo silêncio. Só ouvíamos o ruído da água saindo na bica do tanque. Era assim até que um dos ouvintes pedia a ela pra contar o resto.
“O resto é o seguinte”, começava. “No outro dia, quando Toninho chegou na escola, viu que o Zé Grande, o maior de todos da escola, um varapau mesmo, estava com o corpo lambuzado de mercúrio e contando lorota. Dizia que, quando passava perto do cemitério na noite anterior, havia visto um assombração, dos mais diversos de todos. De branco, tinha só os dentes. E o Zé, ao ver a tal da alma penada, toda de preto, havia corrido tanto, que até caíra, não se lembrava mais onde e se esfolara todo. Nunca mais, podia jurar, nunca mais iria passar por aquelas bandas depois que ficasse de noite. Desse dia em diante, Toninho nunca mais teve medo de passar beirando a cerca do cemitério.E sua família nunca mais foi dormir sem a janta.”