O Enterrador
- Com licença, o lugar está vago?
- Claro, o doutor fique à vontade.
- Como sabia que eu era médico?
- Não sabia. É que me acostumei a chamar de doutor as pessoas da cidade.
- Da cidade?
- É... Com roupas bonitas e que andam sempre bem cuidadas. Assim como o doutor.
- Sim, claro. Não é muito comum se vestir assim por aqui, então?
- Não normalmente... A gente só se ajeita melhor quando tem casamento ou velório.
- Entendi.
- ... Mas, às vezes, nem no velório.
- Como assim?
- Sabe, por aqui, a maioria das pessoas não tem nem um terninho ajeitado para usar quando vai enterrar um parente.
- Puxa, que triste, não?
- A gente aqui é bem simples, sabe. O enterro também é bem simples.
- O senhor parece entender bem disso, não? Trabalha no quê?
- Sou enterrador.
- Como?
- Enterrador. Sabe, eu enterro gente.
- Ah, um coveiro? Que trabalha no cemitério?
- É, mas não trabalho no cemitério, não. O lugar d'ond'eu venho, não tem cemitério.
- Ah é? E como faz quando alguém morre?
- Quando Deus chama a alma de alguém, a gente faz algumas orações, enrola o corpo num lençol, um parente escolhe um lugarzinho bonito, e eu enterro.
- Interessante. E o senhor não se cansa de lidar tanto com a morte?
- Que nada, a gente se acostuma. O doutor também não trata de doenças todos os dias?
- Sim, tem razão. Faz parte do trabalho, não é mesmo?
- Isso mesmo... Mas teve uma vez bem esquisita.
- Esquisita?
- É. Eu estava lá colocando um corpo na cova, e eu juro que o falecido se mexeu.
- E o que o senhor fez?
- Dei-lhe uma pazada nas fuças, e acabei de enterrar.
- Como é? Tem idéia do que pode ter feito?
- Bem, eu fui lá para enterrar um defunto, e enterrei. Qual o problema?
- Problema!? Meu Deus! Você pode ter enterrado uma pessoa que ainda estava viva!
- Ôxe, tratar dos vivos é trabalho do doutor! O meu era de enterrar o cabra!
Se quiser, pode conferir o serviço. Está lá, enterrado direitinho até hoje.
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Fevereiro 2011