Filho das ruas

Virei mendigo. A sensação é estranha. Quando tenho fome, não posso comer. Quando sinto sede ou frio a situação piora. O meu maldito corpo pede o que o dinheiro não pode dar. Moro sob uma ponte com mais dois amigos. Damião foi ex-jogador de futebol. Defendia o gol de um time do norte. Veio para São Paulo após a morte da mulher. Fez testes para alguns clubes, porém, acabou na rua. Jacó nunca teve sorte. Morou com a mãe em um prostíbulo até os nove anos. Certa vez, tomou uma surra da cafetina por roubar alguns clientes e resolveu sumir no mundo. Hoje, beira os trinta anos e têm pesadelos todas as noites.

Quanto a minha pessoa, não vejo motivos para falar agora. Apenas quero afirmar que a marginalidade me acolheu. Costumo deitar tarde e acordar bem cedo. Ganho a vida recolhendo material para a reciclagem. A minha carroça é espaçosa e cabe bastante coisa. Recentemente coloquei um retrovisor. Os dias de trabalho são demorados. Quando o sol esquenta haja força. As costas ardem. A visão fica turva. Sou obrigado a tomar água quente.

A única subida que encaro sem reclamar é a da Igreja das Graças. De repente esqueço todo o peso que carrego e subo sem sofrimento. Antes de entrar faço o sinal da cruz. Ocupo o sétimo banco. Oro até quando o meu coração mandar. Em seguida faço a confissão.

— Padre, perdoa os meus pecados.

— Filho, digam quais são eles?

— Não vejo minha mulher e filhos fazem um ano. Culpo Deus pelas minhas derrotas.

— O Pai é justo. As provas dadas a nós servem para o amadurecimento do nosso espírito.

— Gostaria de voltar para a casa.

— E por que não faz isso?

— Preciso largar a bebida.

— Reze e peça a Deus essa graça.

Saía da igreja com a alma mais leve. Porém, logo voltava a pecar. O cheiro do álcool é irresistível. Bebo até perder a razão. Apago em uma calçada qualquer. Só acordo com as lambidas molhadas do Pixote. Dei-o as crianças ainda filhote. Imagino a falta que elas sentem dele. Mas é bom tê-lo como companhia. Não conheço cão mais fiel. Veio atrás de mim quando fui embora de casa.

II

Mataram Damião. Atearam fogo no pobre coitado. Jacó conseguiu fugir. Trabalhei durante a madrugada e nada pude fazer por eles. O meu colega não merecia terminar assim: queimado. A polícia disse que três homens desceram de um carro. Jogaram gasolina e puseram fogo. Damião estava dormindo na hora.

Faz duas semanas que me mudei para outra ponte. Estou tentando fazer novas amizades. Duas famílias moram comigo. O choro dos bebês não deixa ninguém dormir. Acho que choram de fome. Os meus filhos comiam seis vezes por dia. Eram tratados com todo o amor e carinho. Bastava um chorinho e eu saía da cama para ver o que era. Mateus deve estar com cinco anos e Letícia com nove. Após o nascimento deles, passei a sair do serviço mais cedo. Era corretor. Modéstia parte, dos bons. Cheguei a vender três apartamentos em uma única semana. Sabrina tinha orgulho de mim. Tínhamos uma relação perfeita. A conheci no noivado de um amigo. O seu jeito meigo e o sorriso tímido me conquistaram. Antes de casar viajamos sem destino. Trocávamos juras de amor. Depois de casados vieram os problemas. Alias, eu era o problema. Chegava embriagado. Acusava-a de adultério. Por Deus! Como errei.

Estou doente. Disseram que é tuberculose. Tusso sem parar a dias. Não tenho força para nada. Nem fome eu sinto. Divido o leito do hospital com outras pessoas. O cenário é triste. Tentaram saber sobre a minha família. Disse que não tinha. No fundo gostaria de receber a visita de Sabrina. Olhá-la carinhosamente e dizer eu te amo. A morte faz o ser humano perder o orgulho. A hipótese de deixar de existir assusta. Dá vontade de concertar as faltas que cometemos, na tentativa de convencer a Deus a nos dar mais tempo na terra. No entanto, têm certas coisas que ele não perdoa.

Herberth Brasil
Enviado por Herberth Brasil em 16/02/2011
Reeditado em 17/02/2011
Código do texto: T2796207
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