CHEQUE A PAGAR NO ALÉM?...
Outro dia, numa conversa um tanto filosófica, a respeito de como as pessoas precisam se superar para revolver problemas, o assunto estava complexo, cansativo e, depois de algum tempo, para descontrair, a conversa passou a girar sobre o famoso jeitinho brasileiro e ouvi narrar, mais ou menos, o seguinte:
Conta-se que morreu no Rio de Janeiro, há muito tempo atrás, sem deixar herdeiros um milionário de origem americana. Era um velhote recheado de manias, as mais esdrúxulas, e conhecido pela alcunha de “o homem dos olhos azuis”
Era comum ele passar seis meses nos Estados Unidos e outros seis no Rio de Janeiro. Isto sistematicamente, todo ano.
Aberto o testamento, verificou-se que deixava toda a sua fortuna, em partes iguais, aos seus três parceiros de poker, um italiano esquisito, tipo esticado, imperturbável, um tal Genaro, que fazia pouco tempo chegara ao Brasil, e parece viera do Caribe, onde fazia criação de pássaros raros. Conhecia o milionário há longos anos.
O outro era um espanhol, Don Fernando, diplomata da embaixada da Espanha. Era um sujeito meio estranho...
O terceiro herdeiro, bem, este era um carioca da gema, um “playboy”, só que pobre. Aquele tipo que consegue freqüentar a “high society”, namorar as mais belas mulheres, dar um jeito de se “convidar” para todas as festas nas “altas rodas”, tipo “boca livre”, mas, apesar de tudo é um pobretão... Seu nome: Marcelo Mattos.
Como conhecera o milionário? Não se sabe, a verdade é que, há muito, dava suas “mordidas” no velho dos olhos azuis...
Porém, havia a condição expressa de que, antes do cortejo fúnebre, cada um dos três legatários depositaria no seu caixão, o equivalente a quinze mil reais. Que eram 15 mil reais para os herdeiros duma fortuna tão considerável?
À hora aprazada, vestidos de preto, os três sujeitos entraram na capela mortuária para cumprir, com escrupulosa pontualidade, aquela singular disposição testamentária.
O espanhol foi o primeiro. Avançou, fazendo tipo, subiu os degraus, cofiou o cavanhaque, mostrou aos presentes quinze mil reais e colocou-os com solenidade, junto da cabeça do defunto.
Seguiu-se o italiano, vestido elegantemente, olhou em volta, pegou do bolso uma caneta de ouro, tomou da carteira um talão de cheques, preencheu uma folha com impressionante naturalidade: quinze mil reais ao portador, assinou, dobrou, e enfiou no caixão aquele cheque a pagar no Além...
Chegou então a vez do carioca, o Marcelo Mattos, terceiro legatário de “the blue eyed gentleman”. Todas as atenções se fixaram nele.
Em movimentos automáticos, aquele “playboy boa-pinta”, maneiroso, aproximou-se, tirou do caixão as cédulas do espanhol e o cheque do italiano, guardou-os no bolso do casaco e, calmo, solene, maquinal, escreveu, quarenta e cinco mil reais nominal ao morto. Assinou, mostrou aos presentes, e meteu-os nas mãos do defunto.
Tudo certo! Momentos depois, o caixão era fechado. O brasileiro sem ter deixado de cumprir as disposições do testamento, e sem fazer esforço, ganhara trinta mil reais, além da herança. É o típico jeitinho brasileiro... Pode isto?
Após ouvir a narrativa, quedei-me a pensar, e se existir algum velhote (ou velhota) dos olhos azuis deixando herança nos dias de hoje?...