O Campo Santo
Você tem medo de alma penada? Não? Nem eu! Mas vou contar um fato que aconteceu comigo. Não me contaram não senhor, foi acontecido comigo mesmo numa das minhas andanças pela vida. E foi assim:
Uma tarde qualquer de um mês qualquer dos idos anos de 1977 ou outro ano da beirada de cá ou de lá, sei lá, eu estava brincando com o Abraão Reis no quintal da casa dele quando ouvimos - entre os sons dos bilros da Iaiá - D. Raimunda, sua mãe, combinar uma “quebra de coco” no Itaci, dia seguinte. O Itaci era o sítio deles que ficava há uns cinco km da cidade, após o cemitério, onde tinha muito pé de babaçu e as mulheres iam sempre lá pra quebrar o coco e extrair as bagas que eram usadas pra obtenção de azeite, etc.
Ficamos de bico naquela conversa interessante que tinha sons de aventura e combinamos que iríamos também, mais pra passear e traquinar do que pra trabalhar. Ficou acertado que sairíamos no raiar do dia, antes do sereno secar que era pra aproveitar o sol mais ameno. E atrasos não eram admitidos, sob pena de se ficar para trás, disse D. Raimunda.
Acordei lá pelas oito da manhã com o sol já alto e o sereno quase seco, levantei de um pulo e corri pra cozinha, pois D. Raimunda havia dito que era pra levar um frito pra quebrar o jejum lá pelas horas de sol a pino.
Tinha um pedaço de carne seca dando sopa por ali, fritei um naco malemá, joguei uma farinha de puba por cima e tava pronta a matula.
Saí de casa e fui correndo até o nosso ponto de encontro, mas já não tinha mais ninguém lá. Mulher de palavra. Fiquei mesmo!
O que fazer. Voltar pra casa? E o frito? Comer matula em casa não tem graça. Decidido: vou encontrá-los lá!
Armei-me de muita coragem e fui em direção à estrada da estiva. Lembro-me que naquele tempo tinha um curral logo na saída da cidade que era onde eram abatidas as vacas e os bois para os açougues - O que era raro, diga-se de passagem - Por ali sempre ficavam uns cachorros na esperança de que chegasse alguma rês a ser abatida e com isto, sobrar um corredor ou bofe para refeição.
Esse era o primeiro obstáculo a ser vencido. Cachorro é bicho chato!
Armei-me com um porrete para o caso de alguma investida, mas a maioria dos cães me ignorou e, a não ser por um latido ou outro, passei incólume.
Atravessei a estiva já começando a me preocupar com o cemitério mais a frente e me perguntando se não era melhor eu voltar e comer essa matula em casa mesmo. Vacilante, segui adiante.
Com a proximidade do “campo santo” começou a subir um friozinho pela espinha chegando até o cangote, enquanto eu me armava de mais coragem pra prosseguir naquela solitária jornada. Cheguei no cemitério. Medo!
Medo não, receio, pois macho não sente medo.
Voltar agora era pior e o jeito foi seguir adiante. Pra quem não conhece, a estradinha desertíssima passava (passa) quase dentro do cemitério, separada apenas por uma cerca de arame farpado. Se gente viva consegue passar por ela, imagine uma “alma”, humf!
Quando eu estava quase na metade do campo santo avistei ao longe, na estradinha, um sujeito vindo ao meu encontro... Cá com meus botões comecei a me indagar: seria um ser vivo ou um desencarnado? À minha direita só mato, à minha esquerda, o cemitério com suas catacumbas. Algumas azuis outras negras e ainda outras descascadas pelo tempo. O silêncio era total, sem vento ou brisa.
Como disse antes, voltar agora seria pior. O friozinho no cangote se transformou num arrepio gelado. Segui!
O sujeito era um negro, ou melhor, amorenado, e usava um chapéu preto que deixava aparecer madeixas grisalhas. Vinha andando com um gingado balançante e estava razoavelmente bem vestido com roupas bem passadas e limpas. E eu, com minhas passadas vacilantes e trêmulas, fui me aproximando do sujeito observando cada movimento dele. Os sapatos, embora gastos, estavam impecavelmente engraxados.
Agora eu já tinha plena certeza de que matula também se come em casa e deve ser muito gostoso... Mas, voltar a esta altura era impossível.
E o sujeito se aproximou e eu, andando quase de esguelha, com os cabelos arrepiados e suando frio vi quando ele olhou pra mim. Era pálido e com a pele opaca e tinha um olhar meio pasmado como se tivesse vendo algo após minha pessoa. A estas alturas eu já tinha quase certeza que aquilo não era um ser vivente. Era uma alma penada, ai meu Deus, porque que eu não comi este bendito frito lá em casa mesmo! Receio!
Que receio que nada, isso se chama é MEDO mesmo. Concluo que macho também sente medo.
O Sujeito me cumprimentou com um “Ôp” e o que eu podia fazer? Engendrei um “Ôp”, também é claro, entre dentes... E chegou a hora crucial em que a “visage” passou por mim e saiu do meu campo de visão. E agora, estaria o sujeito se virando e vindo em minha direção? Cadê a coragem pra olhar pra trás e me certificar? Eu heim! Fiz foi acelerar o passo sentindo um arrepio danado no espinhaço-cangote e fui, fui, fui, tentando ser rápido, porém, sem deixar a passada da perna ir muito pra trás com medo de ser agarrado pelos calcanhares. A boca seca, o coração batendo tão forte que eu podia escutar suas pancadas aceleradas. Fui, quase correndo e a cada calango ou labigó que se mexia no mato fazendo um farfalhar de folhas eu me arrepiava novamente.
Eu já tava era querendo jogar fora aquele frito, só de raiva. Que diacho eu queria ir no Itací? E eu lá era quebrador de coco? Ô idéia, Ô desassossego! Ô calango barulhento! Ô vida...
Quando andei mais um pouco tomei coragem de olhar pra trás pra ver se era seguido. Não vi mais o sujeito. Fiquei foi escabreado; onde se metera aquela visagem? Acelerei mais ainda o passo até chegar no Itací pra ainda ter uma dificuldade danada de encontrar o pessoal. Andei muito pelo mato afora – com um sobressalto a cada movimento do mato - até ouvir o som dos porretes batendo nos cocos.
Daí pra frente foi tudo tranqüilo, Encontrei o Abraão que tava fingindo que catava babaçu e o ajudei até chegar a hora da bóia.
Comi aquele frito foi com uma raiva danada, mas tava era bom.
Até hoje não tenho certeza se aquele cabra era gente ou coisa do outro mundo. Só sei que a roupa dele tava muito limpa e o sapato muito engraxado pra quem tava andando naquela poeira vermelha. Nem suado estava o dito!
Eu heim!
Não sei por que me lembrei disso.