'PERO NO MUCHO' *
Padre, doutor médico e cachimbeira**... Aí estão três bichinhos que amargam o vinagre que Jesus Cristo recebeu nos lábios, isto quando esse trio se bota em missão de socorrer alguém, indo a pé ou a cavalo, cá, pelas veredas e estradas carroçáveis do Nordeste.
Essa trinca de gente come é da banda ruim se, respectivamente, eles se desembestam em meter-se de ir inocentar uma alma – ainda que vivente, mas já agonizante – do fogo dos infernos, ou pôr alívio ao paciente de uma doença grave, ou, por outra, pegar, ainda inédito, de fábrica, um bruguelo*** novinho em folha.
Mas cada um é cada um, e Deus esteja do lado de todos, a tocar em frente os nossos ossos do ofício.
Em cavalão selado e puxando outro que nem estepe, peça de pneu sobressalente, meu pai deu de meter-se a ir buscar um reverendo, na cidade de Redenção, bem duas léguas e meia, a fim de que sua reverendíssima pessoa de curador de almas fornecesse a extrema-unção a uma velhinha, já muito sambada em idade, mãe de um morador do Palmeiras.
Palmeiras, este o nome do segundo sítio, menor que o Camará, propriedades que eram do velho Olegário. Distante, arredado, o Palmeiras, lá nos cafundós. Apenas uns ermos de terra, plantados bem ao sopé do elevadíssimo Monte-mor, onde não habitava o nosso pessoal, senão, lá, no deserto, apenas, cerca de uns quatro gatos pingados de moradores.
Pois a macróbia do Palmeiras, mal que mal, já sinalizava para o mundo que estava prestes a esticar as canelas. Então, coitada da dita-cuja, ela carecia dos beiços de algum padre que ao menos lhe atiçassem, às ouças, os derradeiros sopros de vida.
Muito bem, bem, bem... Meu pai foi bater em Redenção. Já foi visto e comprovado que o velho Olegário ia atrás do pároco da sede do município para a delicada função de recomendar a alma da velhinha, a qual andava ruim dos pés e à beira de ir ver a vida eterna em lugarzinho menos safado que naqueles elevados ermos do Palmeiras.
Bem aboletado na melhor cavalgadura, justo a mais famosa e cheia de carnes, o cura partiu de sua cidade, devidamente ladeado pela alimária em que montava o velho Olegário, patrão do filho da moribunda e anosa senhora. Esta, ao que rezava a escassa população daquelas ermas bandas, era toda e só uma carcaça enrugada de peles e ossos, atolada num fiango**** surrado.
E os dois lá se iam, tocando serra arriba, quando, em boa hora, vamos dar com os caminheiros com os pés na estrada estreita e deserta, uma trilha baixa e apertada que circunda, até hoje, um dos flancos do gigantesco Monte-mor, o mais elevado e imponente cabeção de pedra de todo o Maciço de Baturité.
O lugar inóspito, em terreno de grande depressão, comprimido entre dois altos serros, mesmo em pleno dia de sol tem aspecto sombreado. De um lado, o altaneiro “Monte”, como somente assim é chamado pelos nativos da serra, e da outra banda um serro menor, porém ainda de considerável altitude. É aí o serrote da Umburana, habitado por alguns poucos viventes, que o povaréu da gente nativa só diz Imburana.
Ao ver-se socado no socavão das duas imensidões de relevo, o sacerdote estirou o pescoço para ambos os lados, mirou lá nas alturas e fez menção de comunicador para o meu pai:
“– Filho, você acredita em inferno?”
Ora, mas que pergunta mais sem cabimento, e logo saída dos beiços de um padre!... Então, sem jeito, o velho Olegário, não querendo colidir em encrenca com o homem de batina, este cheio de sapiência sobre a Bíblia, para não cair em falta com o representante de Deus, meu pai ficou de cara mexendo. Mas esboçou um risinho insosso e amarelado e, por fim, arriscou um “eu não sei, padre”, muito à mineira, na maior sem graça deste mundo.
Foi então que o padre sapecou a bala da verdade, verdade lá dele, no patamar da rosca do nariz do velhusco:
“– Tem inferno nenhum, não, filho!” – e completou o balaço, de modo peremptório: “O inferno é aqui mesmo, num diabo deste de lugar.”
Pode-se colher, daí, do acontecido, como lição teológica, que alguns padres acreditam em céu e em inferno, sim, senhor. E eles creem, piamente, na melhor boa, e sem sombra de dúvida, ‘pero no mucho’.
Fort., 13/02/2011.
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(*) ‘Pero no mucho’ - Do espanhol, mas nem tanto.
(**) Cachimbeira - Parteira prática, sem diploma.
(***) Bruguelo - Menino muito novo, um bebê.
(****) Fiango - Rede pequena, de qualidade inferior; fianga.