A CAUAN
Era uma Sexta Feira da quaresma, saímos de madrugadinha rumo a pescaria no poço dos bagres, avaliamos que assim poderíamos pegar uns peixes e enriquecer nossa ceia da semana santa. Chegamos no pesqueiro o sol já propiciava uma beleza multicor, seus raios era mais luminosos na medida que refletia no orvalho, a passarada era uma eterna algazarra. Penduramos as traias nos galhos da corvara, “corvara chamávamos por este nome locais de arvores entrelaçadas por cipós às margens dos rios e ribeirões” onde por baixo era o local ideal para montar nosso rancho, que contava com uma barraca feita de sapé tipo um v invertido onde protegíamos da chuva pois dos ventos e do sereno a corvara era muito suficiente. Meu pai logo foi providenciando uma vassoura feita com ramos de plantas beirinhas e pôs se a varrer nossa praça de alimentação , pois o rancho era só para pernoitar. Montou o fogão cortado num barranco do desnível do terreno e distribuiu as obrigações , o trunha meu irmão mais velho ia buscar a canoa, que ficava amarrada na barra do córrego Capoeira Grande com os Porcos, o Demá ia vê se pegava uns peixinhos pro almoço enquanto eu iria buscar lenha pra prosseguir com o almoço. Nisto o velho já tinha posto o feijão pra cozinhar e já estava esquentando uma gordura afim de fritar uns pequenos pedaços de carne seca pro rebate. Tudo encaminhado, ligou o rádio a pilha, enquanto esperava pelos dois irmãos , pois a lenha eu já tinha trago um bocado que dava pra fazer o almoço ainda sobrava pra fazer a janta, só não dava pra acender o fogo a noite fora do rancho pra espanta os pernilongos , pois isto seria um serviço em conjunto com alguém. O feijão estava fervendo e no ponto prum tropeiro , quando chega o trunha com a canoa dizendo, olha veio acho que a pescaria vai ser boa tem muito peixe batendo rio abaixo. Nisto o Demá chega trazendo nas mãos uma bela ganchada de bagres, mandis e até uns três timburés. Papai quando viu ficou com os olhos brilhando, que beleza exclamou, logo pegando a ganchada foi tirando os timburés me disse, corre lá , limpa e traga rápido pra dar uma fritada que é um belo rebate, “lá” onde disse é o lugar onde agente limpa a beira do riacho, onde com mais segurança lavamos vasilhas da cozinha, buscamos água pra fazer comida e limpamos os peixes e também é o lugar que amarramos a canoa quando não estávamos usando. Enquanto limpava os timburés pude perceber através do chiado da panela, e o cheirinho do alho fritando que o velho já estava refogando o arroz. Voltei com os timburés limpos, foi aquela chiadeira na frigideira, pronto os timburés, logo não tinha mais nada , pois o velho tinha o coração muito grande e dividiu os peixes, dois pra ele rebater e um pra dividir com nos três. Almoçamos, tiramos uma soneca; a tarde foram armar as redes o trunha e o papai, eu e o Demá fomos buscar mais lenha pra noite. Tudo pronto redes armadas, lenha pra noite; e papai já começava a urdir no fogão preparando a janta, já tinha recolhido o sapé que serviria de colchão, em pouco tempo depois dava pra notar de longe que a cama estava montada, forrada com um lençol e travesseiros de tronco. Agora sim era hora de pescar os maiores peixes do riacho, podia ser mandis, bagres , piaus até mesmo timburés. Dizia meu pai neste pesqueiro , que batizou de poço dos bagres, peguei bagres aqui, que tinha de tão velho até cabelos na cabeça e pesava mais de quilo e meio, como ainda deve ter muitos outros. Realmente pegamos muitos bagres neste poço, não com cabelo, mas enormes, jamais visto em toda região. O sol acabara de se por , quando ouvimos nosso pai gritar, ô Demá , a hora cocê vim, trais umas laranjinha capeta que tem naquele pé perto da moita de taboca viu, “o rancho ficava bem perto do poço onde pescávamos”. Quando o sol se põe as margens dos rios, parece mais escuro e escurece mais rápido, juntamos os anzóis, cumbuqueiro e os ganchos com peixes e rumamos pro rancho. Demá passou no pé de laranjinha e apanhou umas quatro, atendendo o pedido do velho, ao chegar no rancho percebemos que a bóia, tava bem adiantada, ensopado de mandis, arroz e feijão tropeiro. Com as laranjinhas, Sô Marico temperou o ensopado e também a cangibrina pro seu rebate, jantamos ao son caipira, de uma rádio se São Paulo. Logo o tempo mudou, escureceu mais ainda, começou a ventar, fizemos uma torda, por cima do lugar que íamos acender o fogo, externo ao rancho para melhor proteger caso viesse chuva e o fogo não apagar, passado uma meia hora, vimos que foi alarme falso, mas o fogo já estava ardendo, naqueles troncos que trouxemos das velhas arvores daquele arredor. Sentamos a volta do fogo e ouvíamos nosso pai contar história de tudo, até de mula sem cabeça. Quando ouvimos um barulho vindo da barra do córrego da Capoeira Grande, que deságua no ribeirão dos porcos, ouvimos então uma voz vindo daquele lado, hô de casa, meu pai se levantou e respondeu, opa como vai, vem chegano. Podemos perceber pelo clarão do fogo embrenhado pelo mato, que se tratava de um senhor de mais de setenta anos, mulato trazia uma capanga de algodão, um pedaço de pau parecendo de tambu como bengala. Foi logo entrando naquele nobre recinto, o fogão improvisado já quase apagado, ainda nas panelas uma sobra do jantar. Com as lamparinas acesas deu pra notar que tinha uns dentes brancos como polvilho e uma pele toda enrugada, testemunhas de sua idade. Falando com uma voz suave, cumprimentou todos nós, meu nome é José Deusdedit mas pode me chamá de zé indé, puxou um toco , pediu licença e sentou a nosso lado, junto ao fogo perguntou a meu pai se da branquinha tinha, se poderia provar, meu pai como bom anfitrião , foi logo servindo e até ofereceu, um pouco daquilo que sobrou do jantar, observou , num repara não , mais se o seu zé quisé, ainda posso preparar um peixinho pra vos micê e até um poco de fejão , imediatamente zé indé se negou, dizendo ora pra que tanto , se do tanto que mereço ai já estas pronto. Pedindo licença da sua capanga tirou um cachimbo , um punhado de fumo e grandes cachimbadas ia tirando e contando suas proezas , dizia que é de um lugar muito longe, e que nem mais sabe o nome, que desde rapazinho vem andando, por este mundão sem fim. De vez em quando era interrompido pelo cantar de um acauã, não muito longe dali, más que perto também não era, pois meu pai sempre dizia, que acauã quando cantava, agente nunca achava, o lugar do seu cantar. O velho parava de sua história contar, deixava até que o pássaro parasse de cantar, pra ele recomeçar. Quando foi interrompido pela terceira vez, ele perguntou a nosso pai :
- por acaso o senhor sabe, se por qui perto tem pé de laranja?
- Sim tem pé de laranjinha capeta!
- Bem intão serve, um dos pequeno pode buscar, pra eu três espinhos da laranjeira.
Meu pai olhou pra nos, e logo o Demá e trunha se propuseram a buscar, menos de minuto tava eles de volta, com três espinho verde da laranjinha capeta, logo pro zé indé foi passando, este por sua vez, foi colocando na trempe do fogão, e o papo continuando, uma branquinha, um punhado de feijão tropeiro na mão ia se arrebatendo, e mexendo seus espinhos na trempe. Depois de um bom tempo, examinou os espinhos e exclamou é... tão bãos, esvaziou o cachimbo , colocou os espinhos, com o cabo de uma faquinha, que na cintura trazia, foi moendo os espinhos até em pó se transformar, e o acauã a cantar.
- seu Marico, vou matar este acauã
- seu zé indé, nunca vi arguem contá, que sabe onde esta, um acauã a cantar, come cocê vai matá.
- Seu Marico eu já sei, onde ele tá, com o pó dos três espinhos, que no cachimbo soquei , no cano do meu cachimbo, todo este pó eu vou por e na direção vou soprar, amanhã bem cedo vai lá, debaixo daquele pé de ipê, na curva do espigão vos micê vai encontrá, o acauã e os três espinhos bem verdinhos no peito do acauã enterrados.. feito isto fomos dormir. Levantamos era, umas três e meia da madrugada, papai fez o café. O trunha no fogão, preparada uma panelada de arroz com molho de mandi, nisto zé indé levanta, toma um café , logo após um boa talagada da branquinha, come um pãozinho com caldo do mandi, despede se de nós agradecendo a acolhida e parte sem destino algum. Começa o dia clarear, o trunha e o demá foram recolher as redes, papai me chamou e disse, - vamos ali buscar mais lenha, aproveitamos e passamos lá na volta do espigão,. E assim fizemos, ao chegar debaixo do ipê, nossa surpresa, ali estava caído, de costas entre dois ramos de assa peixe, o danado do acauã, papai apanhou a ave, já rígida, apalpou em seu peito e percebeu três pontinhas, viu que era algo como felpa, puxou uma de cada vez, e ali estava os tres espinhos da laranjeira, novinhos e frescos como se estivesse colhidos aquela hora. Meu pai assustado como nunca tinha visto exclamou – vamo juntá nossas traia e vamo embora, Deus me livre deste tal zé indé, voltamos pro rancho encontramos com meus irmãos e pra eles mostramos, juntamos tudo acabou-se a pescaria que estava programada pra terminar só no domingo. Até hoje ninguém viu, e nem ouviu falar, deste tal de zé indé.