DORES DE PARTO

DORES DE PARTO

Era uma quinta feira. Todas as tardes Susana e Abelardo iam catar lixo no lixão para ganhar uns trocados a mais. Aquela quinta feira não seria igual a todas as outras vividas pelo casal. Desde manhã cedo, Susana tivera alguns pressentimentos estranhos, coisas que seu nível intelectual não podia entender. Uma sensação de frieza nas mãos, falta de ar, e angustias como que estivesse tendo uma crise de nervos muito forte. Mas a moça de Sobral nunca sentira tais sintomas. A quinta feira foi andando rumo à sexta. Passou a manhã, o horário do almoço, sempre curto, e uma refeição bem simples, coisa de gente pobre. Abelardo chegara cedo naquela quinta, e isso foi por demais incomum. Ele passou toda a manhã perambulando pela cidade tentando vender algumas coisas velhas na feira das trocas. Conseguiu pouco, só o bastante para garantir mais uma refeição. Eles não sabiam que nem todo dia é igual ao outro, para eles tudo não passava da mesmice de pobreza que já durava anos, e não tinham mais esperanças que houvesse uma mudança. Tinham se acostumado com a miséria, algo bem comum no Brasil de todos os tempos, exceto quando os índios eram os donos dessas terras. Em um dado momento, já perto das três da tarde, quando o sol escaldante de Sobral prefere descansar um pouco, e toma direção ao seu leito sagrado, o jovem Abelardo, rapaz branco, de cabelos crespos avermelhados, de sorriso sempre aberto, e traços mistos entre gente preta e gente branca, abre a boca quase sem dente, e pergunta:

- Tu estás com cara de peixe morto, que houve?

- Não sei, parece a regra chegando, mas não posso menstruar mais, tu sabes.

- Ah, eh, tu estás de bucho.

- Então, qual o causo?

- Já disse, não sei. É uma agonia na alma!

- Já sei! Tua mãe não mandou notícias mais uma vez!

- Não, seu Zé já disse que está tudo bem.

- Não sei não, mulher é cheia de estória, vamos?

-Vamos!

Os dois saíram como sempre. Roupas simples, um pedaço disso e outro daquilo. Mas, sempre unidos por uma força que o mundo ainda não conhece muito bem. Desceram à ladeira da hora, e trocando palavras foram rumo ao lixo. O lixão era grande; seres humanos e urubus dividiam o espaço numa catagem minuciosa em busca de algo para comer ou vender. As horas avançavam e o sol dava testemunho de seu cansaço. O casal, cansado da labuta, entristecidos pelo insucesso do dia, sentou-se próximo a uma pilha de objetos deixados pelos outros como lixo do lixo.

- Eh, hoje a coisa tá braba! Não é homem, quem viu uma coisa desta?

- Calma, paciência, amanhã a gente faz tudo de novo.

- Vamos, estou com fome!

- Pega aí o saco dos trem!

Uma olhada súbita dada por Susana encontrou esquecido em um canto, quase invisível, um pedaço de papel que lhe chamou a atenção e nele estava escrito: “Debaixo da última cadeira da rodoviária está a mala preta e a chave debaixo de uma pedra ao lado, hoje às 11 horas da noite, nem mais nem menos, não me responsabilizo”.

- Olha Bel, o que eu achei!

- Leia mulher, tu num sabes que eu nada entendo!

Ela leu o bilhete para ele enquanto caminhavam juntos de volta para casa.

Já eram seis horas quando chegaram à casa. Susana ascendeu o fogo e esquentou água enquanto isso Abelardo foi comprar pão fiado na padaria de seu José Rufino. O cara era mão de figa, mas não se sabe por que Abelardo lhe caiu nas graças. O casal comeu o que tinha e sentaram-se, um de frente para o outro em silêncio, pois, até aquele momento nada comentaram sobre o papel que acharam no lixão:

-Eh, que coisa estranha! Disse o jovem mancebo.

-Isso é coisa passada, sem mais validade. Disse Susana.

-Não mulher, a data é de hoje! É hoje à noite.

-E é, sei lá, será que estamos certos?

-Sei lá!

E ficaram assim, trocando prosa até as nove horas.

De repente, em um súbito, o jovem guerreiro diz, “Eu vou ver”. A mulher respondeu, “Eu vou também”. Então eles foram rumo à rodoviária. Chegando lá, sentaram-se a certa distância no meio fio próximo ao local indicado. Já eram dez e meia. Susana ficou um pouco nervosa e iniciou um diálogo um tanto agitado:

-Sei lá, não devíamos ter vindo.

-Calma mulher! Já estamos aqui, agora vamos ver o que acontece.

-E se tiver bandido nesta parada?

-Tenha fé em Deus, não é nada não.

Enquanto eles se arrependiam de terem vindo ao local indicado pelo papel do lixão o tempo passou e o momento indicado pelo bilhete chegara.

-Está vendo Susana já deu onze.

-Onde está o povo, então?

-Sei lá, pensou: “Talvez tudo isso não passe de uma brincadeira de alguém.”

Deu onze e meia e nada. A rodoviária estava deserta e os poucos que estavam esperando condução dormiam nos bancos. Abelardo decide ir mais perto e sondar o lugar. Andou por toda a rodoviária e nada de especial, só uma mendiga enrolada em trapos uns dois bancos depois daquele indicado no bilhete. Tudo estava como sempre esteve, um silêncio tumular e o local completamente entregue as baratas. Então, como ele já estava no lugar indicado pelo bilhete, pegou a mala e a chave, mesmo correndo o risco de ser denunciado pela mendiga, mas, pensou o jovem que ninguém daria crédito àquela pobre criatura e “ela estava dormindo” asseverou o rapaz para si mesmo, e partiu rumo a sua querida esposa.

-Você é louco! Por-que você pegou a mala? Isso é coisa de gente grande, quem sabe são perigosos?

-Vamos mulher! Disse o moço assustado. Os dois saíram apressados e foram para casa. Quando cruzaram a esquina viram um carro preto de placa branca dobrar a esquina da rodoviária com muita pressa. Os vidros eram escuros, e como o local estava mal iluminado, o casal não reconheceu ninguém. Abelardo disse para Susana: “Vamos ver quem é?” Ela replicou: “Eu não, vai tu sozinho.” Ambos apressaram a marcha rumo ao lar doce lar. Os homens desceram do carro e procuraram a mala durante uns cinco minutos depois saíram. Do outro lado da cidade o telefone toca. O candidato a prefeito seu José Furtado Aranha atende ao telefone apreensivo:

-E aí, tudo certo?

-Não. Respondeu uma voz roca com tom de indignação.

-Então, o que houve filho de uma égua, onde está a mala?

-Não sabemos de nada, só que um cara magro de cabelo crespo e ruivo levou tudo.

-Não sabe o nome do homem, filho de uma égua?

-Infelizmente, seu Furtado, não.

-Rapaz, e agora? Seus irresponsáveis! Tratem de revirar a cidade inteira eu quero a droga desse dinheiro. Já em casa, Susana e Abelardo estão sentados em frente um do outro, ambos olhando para a mala como que quisessem saber o que havia dentro, mas a coragem ainda não havia chegado. De repente ouve-se um barulho de sirene, ambos rapidamente correm para a janela e gretam para ver se era a polícia. Era, apenas, uma ambulância que havia vindo buscar um doente, três casas depois.

-Puxa! Foi um alívio. Disse Susana.

-Alívio de que? Sussurrou seu marido.

-Podia ser a polícia que veio nos pegar.

-Qual foi o crime que nós cometemos?

-Mas você não sabe o que é. Abra!

-Não, me deixe pensar! Não é melhor levar de volta e a gente fica livre?

-Homem de Deus, nós já estamos complicados.

-Porra, Susana não diga isso, não!

-É verdade, você roubou a mala do granfino. Você não viu o carrão, não?

-Sim, mulher, você tem razão, e agora? Abelardo teve uma crise de arrependimento até o momento em que abriu a mala.

-Susana! Venha cá, olha que coisa linda! Susana veio e viu a mala aberta em cima da mesa, e dentro dela centenas de notas de cem reais todas bem verdinhas sorrindo para eles. O casal por precaução foi morar na serra. Os meses passaram. Compraram um pedaço de terra, colocaram uma mercearia, e bancaram a vida com mais conforto. Susana estava já na época de ter neném, já chegava o fim do ano. Nunca na vida teve tantas regalias, foi ao médico particular de carro e comprou um lindo enxoval para seu primeiro filho. Quando a moça voltava para casa se deparou com um carro preto igual ao que vira em frente à rodoviária meses atrás. Seu coração acelerou, mas logo se aquietou, “Carro preto todo mundo tem”. Pensou a jovem senhora. Abelardo estava se sentido um homem importante, pagava pinga para os amigos nos dias de domingo, e jogava sinuca religiosamente no dia consagrado ao Senhor. Um belo dia, o dono do bar disse para ele:

-Abelardo, você sabia que estão fazendo perguntas sobre você?

-Não.

-Pois é. Umas pessoas de Sobral estavam perguntando o que você fazia para ganhar a vida.

-O que foi que você disse?

-Rapaz, eu falei que você ganhou no bicho, e não foi?

-É, foi. Abelardo foi para casa assustado e travou uma conversa séria com sua mulher:

-Mulher, nós estamos ferrados.

-Que houve?

-Estão dizendo que estão fazendo perguntas sobre a gente.

-Sabia que eu vi um carro preto parecido com o da rodoviária. Vamos devolver este dinheiro e pronto!

-Mas como? Já gastamos uma grande parte!

-Vão matar a gente.

-É, pode ser, mas quero que saiba que vou lutar até a morte pelo que é nosso. Teve Abelardo um surto heróico.

-Vamos entregar nas mãos de Deus. Teve Susana um surto de fé. Depois que apareceu este dinheiro o casal andava tão feliz. Fizeram até caridade! O seu Antonio da mandioca quem o diga. Cortou o dedo ralando a bendita e precisou de ajuda. Abelardo pagou o carro para levá-lo ao Pronto Socorro em Sobral. Até o seu mandioca é grato a Aberlado. A noite não tardou a chegar. Eles se recolheram cedo. Aberlado rezou dois Pais-Nosso e Susana duas Ave-Marias e pegaram no sono. Naquela noite Abelardo sonhara com a velha da rodoviária contando o caso da mala. E no sonho um homem sem rosto virava e olhava para ele. Ele acordou todo suado e agitado, em seguida acordou a mulher, eram dez e meia.

-Mulher, eu sonhei que a gente ia ser pego.

-Deixa disso homem, a gente não vai ser pego, não. A gente vai ser pego?

-Foi, Susana eu sonhei que o homem da rodoviária olhava para mim.

-Então, você acha que eles descobriram tudo. Como?

-Deve ter sido a maldita da velha.

-Mas ela estava dormindo, você disse!

-Eu disse, mas, e se ela viu, e eu não vi?

-Valha meu Deus, homem! Estou ficando nervosa!

-Calma mulher, vai tudo dá certo, deve ter sido um pesadelo.

-Ah, pesadelo maldito, de má hora! Os dois se deitaram de novo, mas não conseguiram mais pegar no sono, ficaram o resto da noite se mexendo de um lado para o outro na cama, contudo, nenhum dos dois queria revelar seu nervosismo e medo. E a noite ficou idosa. Abelardo se levantou e foi para o banheiro, que ficava atrás, bem perto do quintal murado. Quando o jovem terminou de fazer sua necessidade, ouve bem longe o motor de um carro que parecia passar. O carro estava em marcha lenta, o motor contando. Abelardo sentiu um pavor imediato. Quase fazia xixi de novo. E ficou em pé como se fosse uma estátua ouvindo para ver o paradeiro do carro. Sua mente encheu-se de perguntas e remorsos por ter pegado a maldita mala. O carro passava em frente da casa e ia certa distância, depois voltava, tudo bem devagar. Isto fez Abelardo ficar apavorado sem saber o que fazer. Resolveu ir acordar a mulher, mas, temia por seu estado. Voltou lentamente para cama como se estivesse sendo visto. Enrolou-se nos lençóis e ficou quieto observando tudo. O silêncio era tão forte que Abelardo podia escutar o ronco de seu Heleno, morador da casa vizinha. Este era homem gordo e alto. Tinha uma cara meio cabreira, cara de gente ruim, como se comentava na rua. As horas passaram, Abelardo pegou no sono para ser acordado pelo canto dos galos da redondeza; abriu os olhos, ficou um instante imóvel na cama com os olhos circulando em suas órbitas como se estivesse situando-se no tempo e espaço. De repente, para a tristeza do jovem sobralense, ouve-se um som de batida de porta de carro. Abelardo intensifica as Ave-Marias e os Pais-Nosso, ele sentiu que a hora havia chegado. Pensou consigo mesmo: “Agora devo acorda Susana, deve ser terrível morrer dormindo, a gente nem sabe onde está”.

-Susana, filha, está bem?

-Como estou bem se você não para de se tremer feito vara verde? Deixa de ser covarde e faça alguma coisa!

-Fazer o que mulher! A hora é de entregar a vida a Deus.

-Olha! Deus não vai nos ajudar, pois, roubamos o homem, rapaz! Um barulho muito forte de sirene acordou a todos da vizinhança e começou o corre-corre. Abelardo orou fervorosamente: “Senhor, em tuas mãos entrego o meu espírito”. Logo em seguida com fisionomia desconsolada, Abelardo caminha tropegamente rumo ao seu carrasco. Abre a porta e olha esquivamente. A rua estava cheia de pessoas, havia um carro de polícia e uma ambulância. “Eh, agora vou me encontrar com vovó Capina, eu sabia! Sua velha louca, foi você que armou essa para mim?” Falou consigo o solitário guerreiro. Olhou para trás rumo à porta da frente para ver se via sua amada mulher, e não viu ninguém. “Foi assim que se sentiu o Cristo no Horto Santo. Meu Pai, me perdoe todas as vezes que eu pedi um dinheiro para o pão e o tomava de cachaça Ipioca”. Falou com Deus contritamente o rapaz ruivo. Ele olhou pra a multidão e correu como louco dizendo “Eu me rendo!” Naquele momento surge do nada um rapaz fardado com roupas de assistente de ambulância, era o Cônga, um amigo de infância de Abelardo que conquistou uma coroa rica e se arrumou na vida, até dirigindo a ambulância da Serra o homem estava. Ele tinha vindo buscar um corpo na casa vizinha, seu Gileno aparecera morto. Quando Cônga viu Abelardo, disse:

-Arre égua cara, estás doido?

-Como? É você macho véio! Que alegria vê os amigos, eu estava só brincando! Depois daí vamos tomar umas? Disse Abelardo com um tom de alívio. Enquanto os dois conversavam, ouviu-se um grito de mulher na casa de Abelardo, a bolsa de Susana havia estourado. As pessoas que estavam na rua, juntamente com o marido, correram para acudir a coitada que estava na hora. Susana foi para o hospital na ambulância e Abelardo no carro da polícia. Susana foi deitada ao lado do corpo de Gileno. Alguns meses se passaram depois disso. Um belo dia, o casal estava usufruindo de todas as bênçãos do Senhor quando o mancebo ruivo de Sobral percebeu algo estranho no menino, o Abelardinho:

-Mulher, este menino está ficando preto! Não parece não com meu povo!

-Deixa de estória rapaz, está dizendo que ele não é seu filho?

Abelardo coçou o cabelo crespo e ruivo e desceu a serra rumo a Sobral.

Bem, meus amigos, esta deve ser uma outra estória que eu não saberia contar...

Roosevelt leite
Enviado por Roosevelt leite em 08/02/2011
Reeditado em 09/02/2011
Código do texto: T2779673
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