Transbordante

Era de se esperar que tivesse a alma seca, por ser sem filhos e por nunca ter sido preenchida pelo desejo de um homem. Cinquenta anos, virgem, pagem de pai, mãe e irmãos desde a puberdade, Carminha era cheia de uma santidade incompreensível para seres seculares como nós.

Agora que morrera o último irmão, ela se ocupava mais conosco, tornando o trabalho do departamento mais agradável. Se encarregava de todos os lanches da tarde, de toda cesta básica, de todo enxoval de bebê que acaso alguém precisasse.

Quando questionada se arrependia-se de ter doado a vida a serviço do outro sorria candidamente e respondia que aquilo era o que o Cristo queria dela. Nunca admoestava ninguém com rispidez. Só tinha palavras de amor - Não ignore os dons que Deus te deu, Maria Lúcia - dizia à colega do setor ao lado que reclamava da vida. Esse era o máximo rigor que apresentava na fala.

Um dia anunciou a aposentadoria. Nossa tristeza não combinava com a alegria dela. Agora poderia trabalhar em horário integral na Igreja São José, um sonho que ela alimentava há muito. Não podíamos compreender como alguém pudesse viver apenas para o serviço cristão. Para nós ela era um copo vazio por ter dado tudo que tinha. Mas como cantaria Chico, é sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar.

Norma de Souza Lopes