O CABOCLO DÀGUA

No poço do areião, tudo tranqüilo todos pescando, Sô Marico, Sinhozinho, Ademar, Osório, Onofre e eu. Lua clara, que até dava para nós enxergar-mos a margem do outro lado do rio. Uma saracura três potes canta às margens do córrego marcela, bem perto dali, uma algazarra de grilos no capinzal acima do poço, pareciam uma orquestra desafinada, uns cantando grave outros agudos, uns repicavam outros esticavam seus cantos. O sapo ferreiro, no brejo este sim era o mais afinado com sua bigorna, de tão alto era as suas pancadas. Um barulho diferente vinha do rio, o barulho de um remo, que vez em quando na popa de uma canoa batia. Era o Sô Belarmino, barranqueiro antigo daquele trecho , todos os dias ali descia, rio abaixo, vinha da conferencia das pindas e das redes. A canoa já bem velha, de tempo em tempo tinha que tirar água que nela entrava, pelos buracos nas fendas da velha madeira, e ai outro barulho o de arrastar da cuia no fundo da canoa, e a água a cair no rio ao lado jogada. Todos cumprimentam Sô Belarmino, e este cumprimenta-nos por atacado. Sô Marico então lhe pergunta. E ai sô Belarmino tem pego mui pexe. E sô Belarmino com ares de tristeza, responde . tem não Sô Marico, ta mui ruim pá pexe. Sô Marico então convida Sô Belarmino a tomar um café no rancho. E este então lhe disse , que não pois, neste dia subiu muito tarde para conferir as redes e pindas, mais amanhã, ele iria subir mais cedo, e ai sim poderia apear e tomar um café, e tirar um dedo de prosa, e assim a canoa foi descendo , pela própria correnteza do grande volume d’água e lá na curva do rio foi sumindo , dentro de pouco tempo. Só o barulho ouvia, do remo na popa, da cuia raspando o fundo da canoa e da água caindo no rio. No outro dia, a rotina do rancho continua, uns bebem, comem se divertem, outros dormem, tem uns outros que pescam e apreciam a natureza. A tardinha armam as redes e pindas, buscam lenha e preparam a janta. Hoje tem: moqueca de surubim, tutu de feijão, salada de tomate com cebola de folha, cerveja quente e caninha dos sertão com limão. Todos jantaram, tomaram café. Sô Marico , como gostava de mexer na cozinha disse: hô pessoal, se ocêis quizé pode descê pro poço, assim queu lavá as vazia eu vô tamem. Pegaram as varas com os anzóis e foram. Logo Sô Marico lavou as vasilhas sujas da janta e também desceu para o poço com sua varinha. Neste dia a lua já não era a mesma, não quis aparecer, estava um breu. Pelo barulho que ouviram, já sabiam era sô Belarmino com sua canoa o rio descendo. Depois de se cumprimentarem, Sô Marico foi dizendo; e hoje Sô Belarmino pego arguma coisa. Há hoje peguei só um molequinho aqui ó, levantou o moleque e mostrou , era de uns dez quilos mais ou menos, e pro saco de novo voltou. Intom Sô Belarmino apeia, e vamo lá pro rancho, mode nois prozeá e o Sô tomá um café. Sô Belarmino puxou a canoa, jogou o saco com o moleque às margens do rio, esticou a corrente da canoa e amarrou no remo fincado na beirada do poço. Fomos para o rancho, Sô Marico ascendeu os lampiões, uma lamparina que ao lado do fogão improvisado ficava. Ademar ascendeu uma fogueira, puxamos uns tocos de madeira junto ao fogo sentamos e fomos prozear, sô Belarmino já veio com o coité na mão e junto a cabaça com a caninha do sertão , perguntou , é aqui que a danada tá, Sinhozinho logo respondeu, é é sim pode pegá aliás eu memo vô te servir, Sinhozinho então despejou uma bela talagada da marvada para sô Belarmino, que com as duas mãos segurando o coité, pequenos goles virava e tirava gosto com um pouco da moqueca que sobrou de nosso jantar. Sô Marico a sô Belarmino pergunta.

- Sô Belarmino o sô que pesca aqui a mui tempo, deve tê visto muita coisa por aqui num é.

- É Sô Marico já vi mui mais muita coisa memo sô.

- Sô Belarmino o sô já viu fala, que nesse rio tem um tá de caboco d’água .

- hi Sô Marico, eu só num vi contá, mais eu passei foi apertado cum danado desse um dia, já tem uns deis ano. Eu vinha cumo sempre venho desceno o rio, só que do lado de lá do rio e não no de cá, por isso é queu passo agora só do lado de cá, justarmente pra evitá deu sê suprendido por ortro, porque esse queu topei quele, esse num vai mais me importuná não.

- uai Sô Belarmino, mais oncê incontró intom com tá caboco d’água, e purque quele num vai mais te importuná.

- Hó Sô Marico, eu inté arrepio, quando tenho de novo contá o que sucedeu naquer dia. Tava uma noite muito escura, já tava pra mais dais deis hora da noite né, quando eu vim desceno o rio com minha canoa, vim desceno né, começo ventá a relampá né, e eu ali cum pressa de im casa chegá né, com de fé Sô Marico a canoa paró de andá né, intão eu remei com mais força ainda né, pois eu achei qui tinha garrado num toco né, mais memo assim, nada da canoa arrancá, e nem buliu do lugá né, ai sô, ela deu um balanço assim na proa né, quando eu ví , um braço assim tudim cabeludo né , e com a mão na berada da canoa, quereno virá, minha canoa cum eu né, ai sô eu num avexei, peguei meu facão né, que ficava debaixo da donde eu sentava na canoa né, e dei uma facãozada na mão do danado sô, quando ví com o clarão do relampo né, quatro dedo dele ali na canoa ficó. Era uns dedão assim deste tamanho; mostrando a dimensão com suas mãos dava pra avaliarmos que tinha uns vinte centimetros, bem escuros né. Eu guardei estes dedos até poco tempo, por esses dias eu percurei eles pra mostrá prum ortro pescadó né, que num creditó ni mim né, mais num achei mais, se não eu ia trazé né, pra mode mostrá pro cêis vê. Caso ocêis, por essas andança pelo rio topá um caboco né, sem dedo na mão dereita, pode tá certo que foi esse queu topei né. por respeito ao Sô Belarmino, ouvimos com muita atenção e não duvidamos, pois todas as vezes que voltamos ao poço do areião, primeira coisa que fazemos é ascender uma fogueira e pendurar um chifre na entrada do rancho, dizia Sô Belarmino que era a única coisa que espanta caboclo d’água.