Uma noite, um corpo e uma carta
Como sempre aqueles corredores estavam vazios e amedrontavam a qualquer pessoa que não estava habituado graças à falta de janela e às várias lâmpadas queimadas ou que piscavam freneticamente.
Rubens adorava trabalhar a noite por poder ficar a sós com seus pensamentos e nada mais, mas odiava seus deveres. Ter de despir, limpar, catalogar e armazenar defuntos nas geladeiras do necrotério era repetitivo e entediante. A única forma de se manter ali era ficar imaginando como cada um daqueles corpos chegou até suas mãos e arriscar quantos ia chorar em seus cachões.
No começo ele mantinha uma lista com nomes e seus palpites para contar e ver se acertará (teve um mês em que até montou um gráfico), mas não tinha mais tempo para isso. Agora só imaginava os números e puxava uma leve conversa com os cadáveres.
Saindo um pouco de suas memórias, o enfermeiro olhou o relógio e percebeu que seu horário de intervalo havia acabado. Desde a instalação das fechaduras eletrônicas e o novo sistema de segurança não podia mais passear pelos corredores e buscar um pouco de vida nos andares superiores. Sua vida agora era monitorada.
Segurou sua caneca com café em uma mão, a sacola com frutas na outra, o sanduíche que comia com a boca e voltou para seu posto de trabalho. Lá, procurou uma mesa sem cadáver ou qualquer utensílio, depositou seu lanche lá e puxou-a para perto do corpo que decidiu que seria o próximo.
Entre um gole de café e uma mordida em sua refeição colocou as luvas e buscou um bisturi para remover os panos que cobriam o corpo. Havia tanto sangue e sujeira sobre o homem que os tecidos que o recobriam não podiam mais ser chamados de roupa.
Era um dos poucos cadáveres que chegava nesse estado para ele, geralmente eles passam por uma autópsia antes ou suas roupas, ou pelo menos a camiseta, são removidas nos primeiros atendimentos.
Aquele homem que parecia estar em seus 40 e poucos anos teria passado despercebido a Rubens, a não ser por causa de um pedaço de papel amassado e apertado na mão esquerda.
O papel estava meio queimado, assim como parte da mão do falecido identificado como Antônio. Ao ser desdobrado mostrou que a parte inferior tinha perdido boa parte de sua informação graças ao fogo e ao sangue que impossibilitava a leitura, mas a maior parte podia ser lida.
“Eu já cometi inúmeros erros em minha vida. Isso é normal, qualquer um comete. Esse é a melhor dádiva do ser humano, a habilidade e a liberdade do erro, somos livres para fazermos o que quisermos e, se alguém ficar chateado ou algo dar errado, basta um simples ‘me desculpe’ e pronto. Você foi perdoado. Por quê? Porque você é humano.
Uma boa filosofia de vida. Faz-te ter um espírito livre, despreocupado e reconfortado pela incoerência e impunidade da vida. Cria uma demoníaca ilusão de que tudo pode ser feito, já que há um perdão a tudo.
Hoje em dia eu passei do momento de festa e aproveito os magníficos sentimentos do ‘dia seguinte’. A ressaca que martela sua cabeça com o ressentimento daquilo que não deveria ser feito, mesmo que tenha trago bons momentos.
Sou circundado por questões de debatem e refletem em meu interior: O que fiz de errado? Em que momento da minha vida fiz a escolha que me trouxe até aqui? Se eu pudesse voltar e reparar um erro, qual seria ele? Qual dos tantos?
Muitas das pessoas que me rodeiam tentam me tranqüilizar dizendo que os tropeços ao longo do caminho abrem uma chance para que eu me erga. Erguer para que? Para onde? Já que tropecei, para o mesmo lugar que estava antes? Retroceder para poder voltar ao mesmo lugar? Nunca ir à frente?
Antes das centenas de garrafas da mais pura vodka que agora enfeitam meu ‘escritório’ em uma pilha muito bem formada ao meu lado, eu diria que este é um papo de perdedor, bêbado ou de um defunto. Mas eu digo qual a verdade nesse pensamento: Ambos. Quem escreve agora é um perdedor, bêbado que não existe mais à sociedade ou a qualquer pessoa.
Sempre estive cercado de diversos amigos, mas nunca tive um ‘amigo de infância’ ou qualquer pessoa que conseguisse permanecer ao meu lado por mais do que dois anos. Eu sempre fazia algo errado, sempre dizia ‘me desculpe’ ou ‘me perdoe’.
Nunca liguei para isso (afinal, pra que preciso deles? Consigo viver bem sozinho), pra falar a verdade, nunca reparei nisso. Fui me isolando e há pouco tempo a única coisa que me restou foram colegas de bar ou de sarjeta pelas noites afora.
Até mesmo minha família, pai, mãe, irmãos, pessoas condenadas a te amar para sempre, cansaram de ouvir minhas desculpas, me desvalorizaram e partiram. Essa riminha que acabei de escrever montaria um pequeno sorriso em meu rosto se não fosse trágico.
Descobri, de uma forma não muito agradável, que há situações onde ser humano não adianta. Não há desculpas, não há perdão. O momento em que começa a ser envolver com pessoas que não lhe tratam como humano.
Devo muito dinheiro e chegou a hora de pagar. Na verdade, esse momento já passou há muitos meses. Se eu não estivesse muito bêbado para isso eu tentaria lembrar-me da data e o valor que deveria ter pagado, mas isso não vem ao caso. Nesses últimos momentos, limito-me a pensar na vida e pôr nesse minúsculo testemunho o que deduzi através dos meus erros.
Para quem lê um pequeno aviso: Não tome isso como verdade, muito menos como ensinamentos, já que um sábio nunca condena a si uma morte como a que terei. Apenas relatarei da melhor forma que puder o que me trouxe até aqui e o que tirei disso tudo...”
Nesse ponto em diante o papel se tornava impossível de ler. Esse era o último e inacabado relato de um defunto. Aquilo tocou Rubens de uma forma que nunca havia imaginado, um corpo havia se confessado a ele antes de partir.
O enfermeiro terminou seu lanche e seu trabalho, organizou suas coisas e foi para casa. Mais tarde descobriu nos jornais que o Antônio da noite anterior essa um pé rapado que devia muito para agiotas e deixou esse mundo através dos punhos de gorilas disfarçados de gente.