CÔMICO OU DEDO-DURO?
Era cheio de maroscas o André. Claro que André não era André, senão um codinome. Apenas suas astúcias e marotagens, sem fantasia nem floreio, aqui o preto no branco, são fielmente verdadeiras.
Caviloso, sempre inventando gestos e trejeitos engraçados, quando era sua vez de intervir nas discussões do grupo. Pelo excesso de prosa dele, nas comunicações da organização, o partido, alguns militantes supunham que se tratava de um dedo-duro infiltrado.
Sei não. Acho que não era alcaguete coisíssima nenhuma, mas apenas um tipo que se metia com chalaças, aspirante a cômico, comediante, humorista, coisa assim. Pode até ser que um cômico desarrazoado, idiota, que não media o lugar exato para expor o seu lado hilário. Também nunca fui de botar por ele a mão no fogo.
Não devo ter-me encontrado com o gajo, no seio da vida militante e de esquerda, mais do que quatro, cinco vezes. Isto foi o bastante para fixá-lo como um comediante, um humorista em potencial. O sujeito era armado de gracejos até aos dentes. Fora das sessões formais dos debates teóricos, ah, nem se fala. Ele fazia era só todo mundo cair nas gaitadas.
Em todas as reuniões de que me lembro, realizadas em sítios ou chácaras, clandestinamente, fora da capital, lá aparecia o gajão devidamente acompanhado de uma bíblia gigantona. Agora, fosse ocorrer qualquer externa movimentação estranha, como um longínquo fonfonar de um carro, qualquer rapapé que fosse...
Não podia ouvir nenhum bafafá, que logo batia de mão à bíblia, objeto de estimação do qual nunca se separava. Ele podia esquecer-se do “Manifesto Comunista” ou de outro qualquer texto marxista-leninista previamente designado para leitura e discussão.
Mas estando em degredo, na clandestinidade de uma fazenda ou sítio, a qualquer ruído que o André ouvisse ao longe, leve som vindo do exterior do “aparelho”, aí o boa-pinta empunhava o livrão e o abria, remexendo os beijos sem cessar, fingindo-se dele o mais atencioso e fervoroso leitor.
Quando o gesto religioso acontecia, ele todo às voltas com os Evangelhos, perante aquela cena de contrição, alguns companheiros encaravam o gringo e ficavam de queixo caído; outros se riam, no entanto, a fazer cara de seriedade, engolindo a graça, lá por trás do inusitado espanto ou da inconfessável desconfiança.
Menos por educação que por ceticismo, ninguém, no recinto camuflado, de viva voz, censurava o ermitão por aquele rompante meio místico e metade hilariante. O hiato de silêncio era inevitável e as discussões prosseguiam na célula dos camaradas.
Uma vez, no aconchego de uma reunião ordinária, surgiram-lhe boatos desabonadores. Sobre o moço aloirado e de olhos azuis, já com idade de cidadania nas costas, pois talvez portasse uns quarenta natais, alguém nos forneceu notícia de que o nosso cômico tinha ligações estreitas de amizade com os homens da repressão.
Afinal, o André – tão cheio de momices e lorotas – seria um “meganha”, como se dizia no calão dos comunas? Sei lá! Assim, o papo da reunião ordinária, claro que sem a presença dele, virou tempo rendoso. Foi um metrô de informações, um leva e traz até certo ponto justificável. E a futrica chegou a atiçar fogo no beiju. E um da patota sugeriu à coordenação da célula: “– Vamos rifar o homem, isolando-o, porque a gente não pode matá-lo.”
Penso que o isolamento do galego foi feito, pois nunca mais dei de olho com o André. Onde andará aquele um, cheio de arrumações cavilosas?
Ser militante político, de esquerda, na época em que essas coisas de davam, entre nós, tudo isso exigia muito tato, cuidado máximo e atenção. O olhar tinha que andar muito às escâncaras. Em primeiro lugar, não confiando fácil em ninguém e, depois, manter a boca trancada, que ali na esquina estava o olho mágico do “big brother” da repressão.
Se um tipo “abrisse o livro” – a expressão vem de um dos meus posteriores carcereiros –, aí a porca torcia o rabo. Era tiro e queda: gente presa, torturada e até indo comer capim pela raiz.
Fort., 04/02/2011.