A TRAIRINHA

Lá pras bandas do Clodomiro, depois que passa no mata cachorro, no sentido ao são Francisco, a esquerda dos porcos, ao lado da fazenda do barreiro, acima da lagoa, um pequeno sitio ali tinha, bem cuidado, herança de sua mãe, dona Benedita, que no tempo da lei Áurea, seu sinhô, de papel passado entregou, aquele pedaço de chão. Sua mãe ali faleceu, e ao lado de um belo jequitibá foi enterrada. Joaquim, morando sozinho, sempre chorava, quando das mãe se lembrava. Um dia Joaquim por mariinha, uma mulata izoneira, cabelos pretos esparramados pelas costas, olhos negros como jabuticabas, se apaixona, e logo matrimonio se firma. Uma casinha barreada, coberta de sapé , que quando de lua clara, da cama o luar enxergava, teve que passar por uma reforma. Sapé novo, casinha novamente barreada, com estrumes da mimosa, misturado, com barro retirado as margens da lagoa. De tudo que precisava, ali do sitio retirava, menos sal, lamparinas eram acesas com azeite de mamona ou até mesmo óleo de coco, um porquinho no chiqueiro sempre tinha a engordar, muitas galinhas, frangos, ovos e na hortinha nos fundos da bica de tudo um pouco tinha. A família ia crescendo, todo ano umas quatro galinhas sofriam, pois Joaquim mesmo fazia a sopa, pra mariinha ficar forte e aumentar o leite, pro novo rebento que chegava. Joaquim sempre pescava no ribeirão dos porcos, e até na lagoa, vez em quando com o balaio, umas batidas, logo voltava com um monte de trairás, piranhas até dourados trazia. Um dia com miguelzinho seu segundo dos mais velhos, numa batida de balaio uma trairinha pegou, viu que a pobre era tão pequena, que talvez com tanta piranha, na lagoa não ia sobreviver. Miguelzinho então lhe disse; papai vamos levá ela, e no tanque da biquinha eu coloco, quem sabe ela viva melhor. Joaquim concordou e pra casa voltaram com um montão de peixes, e a trairinha num litro d’água. no tanquinho miguelzinho a trairinha despejou, e a biquinha silenciosa, jorrando uma cristalina água continuou. Passado algum tempo, miguelzinho sempre entretido com a trairinha, do pocinho da biquinha não saia. Miguelzinho resolveu dar uma de cientista, e com a trairinha seus experimentos fazer. Contava até cento e trinta e na água a trairinha ele deixava, depois de fora d’água contou até dez e pra água a trairinha voltava, cento e trinta dentro d’água, fora d’água contou vinte e pra água a trairinha retornou, cento e trinta dentro d’água, trinta fora d’água, cento e trinta dentro d’água, fora d’água agora contou cinqüenta e pra água tornou a voltar, cento e trinta dentro d’água, fora d`água agora e cem e pra água tornou a voltar , cento e trinta dentro d’água, cento e trinta fora d’água, cento e trinta dentro d’água, cento e cinqüenta fora d’água, cento e trinta dentro d’água, duzentos fora d’água, cento e trinta dentro d’água, trezentos fora d’água, cento e trinta dentro d’água, quatrocentos fora d’água, cento e trinta dentro d’água, quinhentos fora d’água, nisto dona mariinha grita, hô miguezinho vem comé. Miguelzinho saiu correndo, na cozinha entrou, foi pegando sua cuia com a comida, que sua mãe havia preparado e pro chão foi sentar, pois ali banco não tinha. Num instante Joaquim viu a trairinha entrando e pulando, de cuia em cuia provando, um pouco de comida dos meninos. A partir deste dia então, era mais uma companheira da criançada no quintal a brincar, no almoço um, alvoroço a trairinha a pular, até que Miguelzinho uma cuia arrumou, pra trairinha alimentar, mas sempre ela pulava vez em quando, em outra cuia, que não a sua, pra poder beliscar um pedaço de lambari frito, que era o seu prato preferido. O tempo foi passando, e a trairinha crescendo, agora já era uma traíra, pra dormir , ficava debaixo de uma pia improvisada, bem ao lado da biquinha. As coisas não estavam boas pra família do Joaquim, a dois anos que não chove, pasto todo seco que fazia dó, até o canavial nem um broto, sequer este ano deu pro Joaquim uma rapadura fazer. O ribeirão que nunca havia secado, desta vez ele secou, no lugar que era a lagoa, agora era só poeira que com o vento levantava. Does porquinhos, que ainda em meia serva estava, tiveram que matar, pois milho não tinham pra dar. E a vaquinha mimosa se foi, quando para parir de fraqueza que estava. Só ficou a filomena, até esta coitada, foi sacrificada pra fome poder matar, as galinhas foram acabando, nem um ovo sequer botavam deste jeito nem frango tinha pra cidade levar e lá no mercadinho vender, pra depois poder trazer, açúcar, sal. Até farinha agora, tinha que comprar, não sabia mais Joaquim, de onde tirar o sustento de sua família. Numa noite Joaquim matutando, matutando até que teve uma idéia, e com mariinha falou, com o dedo indicador entre os lábios, somente pronunciou, agora só ficou ela, mariinha entendeu, porque os meninos num quarto ao lado dormiam e podiam escutar, que Joaquim amanha bem cedo ia, levar a pobre da trairinha e eles não iam aceitar. Joaquim, bem cedo levantou antes do dia clarear, passou a mão na capanga, com lágrimas, nos quatro cantos dos olhos, debaixo da pia pegou, a traíra ali colocou. Rumou , rumo a cidade antes mesmo do sol sair. No caminho pra cidade por onde tinha que passar, era todo tortuoso e uma pinguela existia, ligando uma margem a outra dum corguinho bem no fundo de um precipício. Joaquim ao atravessar, um estalo escutou e começou a despencar, capanga prum lado foi, e a trairinha coitado no precipício rolou, Joaquim seguiu o caminho que o gado ali descia , pra sede matar, com a agua do corguinho. Corria que nem um doido, tropeçava e caia, levantava e corria de novo caia, até que em fim, na beirada do corguinho chegou. Procurou, procurou pois agua ali também não via, somente um pocinho que daquela seca sobrou, Joaquim de longe avistou, a trairinha coitada, virada com a barriga pro ar, correu mais ainda e nas mãos o socorreu, via ele que chegou tarde, pois em vão suas massagens fazia ressuscitar. Joaquim então percebeu o motivo da sua morte, com o tempo a coitada, esqueceu como nadar, e naquele pocinho de nada acabou morrendo afogada.