Um Conto Domingueiro e Verdadeiro.

Tem época na nossa vida que nossos gestos beiram à loucura, já que as contingências do lugar e a dinâmica dos acontecimentos levam-nos a procurar as coisas que nos dão prazer, principalmente, quando corre por nossas veias o sangue da juventude, já que nessa etapa da vida agimos com as emoções, sem pensar em conseqüências, diante dos impulsos que campeiam nossas aspirações.

Um conto verdadeiro...

Era um domingo qualquer, que amanheceu ensolarado, com o céu tão azul que parecia uma pintura eterna feita com pincéis gigantescos, que não deixavam qualquer lacuna que pudesse estreitar a longevidade do anil celeste.

No sertão não existe o hábito de permanecer na cama, até que o sol esquente as moleiras, pois, nossos sentidos são aguçados pelos açoites da madrugada, quando o galo canta no terreiro e o sabiá laranjeira gorjeia nas matas fechadas que circundam a fazenda encantada, onde vivia pacificamente, as muitas famílias que construíram suas casas num círculo rural em torno de muita área verde, mas, que se concentravam ao redor de amplos quintais que resplandeciam uma mistura própria do meio rural, entravadas em glebas compactas de chão, que se estendiam por muitos metros aos arredores dos casebres, não deixando de exibir o grande arvoredo frutífero que era composto por muitas plantas, entre as quais, laranjas, limas, limões, tangerinas, cajus, jabuticabas, goiabas e imensas mangueiras, que se tornavam um rincão de frutas que, quando maduras, atraiam todo tipo de pássaros que por ali pousavam para desfrutá-las em abundância.

Com esse cenário deslumbrante eu era mais um ser humano que ali passava trinta dias de minhas férias, curtindo toda plenitude da natureza, andando descalço pelo chão e por vezes calçando uma botina, para espreitar-me mato a fora na procura de riachos que me pudessem oferecer algumas horas de divida pescaria, à frente da luta dos lambaris que nem sequer desconfiavam das minhas intenções predadoras que era transformá-los no almoço do dia.

Mas, nesse dia, especificamente, não estava disponível para realizar essas tarefas rotineiras. Minha mente navegava pela pequena viagem que ia realizar rumo a uma fazenda distante, com maior fama do que aquela minha hospedagem cotidiana. Tratava-se de uma morada de muitos peões que atendiam ao rico patrão, criador de gado. Era um local afamado, já que por aquelas bandas, realizavam-se muitas atrações rurais, como rodeios, quermesses, bailes à base da catira, além, é claro, na minha atração favorita, a existência de um campo de futebol, que atraia todos os peladeiros daquele rincão rural.

A localidade em questão era o ponto de conversa por todos daquela região, já que em razão da fazenda possuir muitos peões na lida com o gado, o patrão era um sujeito apaixonado pelo futebol, inclusive, presidente de um clube interiorano, sendo certo que nas horas vagas, deixava seus afazeres urbanos, carregando os apetrechos esportivos que não mais serviam ao clube, para distribuí-los aos seus pares da roça, com quem dividia a sua alegria de vestir a camisa 10 do time da Fazenda Campana.

Para nós, que apenas escutávamos de longe a proeza do anfitrião, estar na localidade e enfrentar aquela equipe tão abastada, era uma glória que se inflamava em nossos corações, exigindo de nós esforço redobrado para estar em campo na hora marcada, pois, a nossa gleba (tão simples), de moradores sertanejos, ousava fazer um desafio inédito, apostando um novilho na contenda futebolística. Eu, particularmente, era o mais ansioso, já que as esperanças da minha gente estavam centradas no meu rendimento dentro de campo, por ser o mais novo e também por ter fama de goleador na localidade onde eu morava.

Meu avô; um senhor um tanto quanto antiquado, avesso a futebol, não aprovava nossa aventura, primeiro porque achava que não tínhamos potencial para vencer o adversário e, depois, o novilho da aposta era do seu rebanho, por isso, já fazia as contas de uma cabeça a menos na sua boiada. Não podia impedir nossa caminhada, mas, tinha como dificultá-la. Negou a condução, com a justificativa de que o caminhão de sua propriedade tinha de se deslocar a um rincão vizinho para levar algumas sacas de arroz produzidas na fazenda. Só nos restou, como meio de locomoção, o trator da lides campais.

Meu tio, o motorista e técnico, acomodou-se no banco do veículo campestre, engatou um reboque de madeira, sujo e gasto pelo tempo, mas que resistia à lide, por ser feito de madeira maciça e bem dura, que dificultou sobremaneira nossa viagem, pois os solavancos da estrada rural, mais as circunstâncias do meio locomotivo - sem qualquer conforto - anunciavam um sacrifício a mais. Aquela madeira dura, onde, fatalmente, tínhamos de sentar, redundou numa aventura sem precedentes, pois, os ‘atletas’ mais velhos, quando chegaram ao fim da viagem, exibiam aquele sugestivo gesto de ‘mãos à cintura’, acusando pequenos mal estar na coluna.

Evidente que, num trajeto desse porte, tivemos de gastar muitas horas para chegar ao destino. Mas, nenhuma dificuldade - naquelas alturas - era capaz de tirar o ânimo da moçada. Chegamos na hora marcada e fomos calçar nossas chuteiras (ki chutes), pois, esse era o único petrecho que condizia com uma partida de futebol, já que cada um dos jogadores exibia uniformes próprios, porém, com um único detalhe: Uma camiseta desbotada que um dia foi da cor vermelha.

O fato é que o dia realmente era festivo para os moradores da redondeza. Nesse mesmo evento, estava programada a festa do padroeiro do lugar, por isso, havia muitas pessoas que ali estavam para emendar o jogo com o churrasco de comemoração, além, é claro, do bailão que correria a madrugada. Enquanto, a equipe adversária exibia uma organização invejável, com uniforme bem harmônico e bola novinha em folha. Nós, nas nossas limitações de caboclos, timidamente, entramos em campo com certo desânimo, pois, nem de longe tínhamos noção do que seria nosso rendimento dentro de campo, considerando que, nosso elenco era um time juntado em nossas adjacências, sem contar o desconforto da viagem e cansaço natural que se apoderava da nossa delegação.

Entretanto, minha juventude me dava um gás que nem mesmo eu tinha noção da sua magnitude. Nossa zaga era um tanto quanto desajeitada, mas, constituída de homens acostumados com a lida do campo e tinham considerável energia para rechaçar as jogadas adversárias. Nosso meio de campo, visivelmente, desentrosado, pois, a escalação do meu tio (técnico), adveio de informações esparsas da própria vizinhança.

O fato é que algumas surpresas nos reservavam. Havia dois jogadores do meio que não mereciam estar trabalhando no campo. Eram, tecnicamente, perfeitos nas armações das jogadas. Foi, assim, que numa dessas manobras eficientes na meia cancha, uma bola foi alçada para este ponteiro direito, que deu um drible no único zagueiro que restava, atirando a bola certeira sobre as redes adversárias.

O árbitro, da redondeza, com leve inclinação para favorecer seus patrícios, ‘achou’ um pênalti no segundo tempo, cobrado pelo centroavante e convertido. Não obstante, no ‘apagar das luzes’, novo lançamento, desta feita para nosso novo centroavante, um veterano grisalho que entrou no final da partida, mas, que já tinha jogado muita bola na sua juventude, que, certamente, pelo desaviso do adversário, ficou quase desmarcado; desídia suficiente, para que acontecesse o gol derradeiro da partida, favorecendo-nos no placar que foi concluído em 02 X 01.

Resultado: Tivemos que retornar numa jornada extravagante, pois, fomos brindados com algumas horas de chuva que encharcou nossos briosos atletas, mas, nem a fúria do tempo foi capaz de tirar o ‘gostinho’ de ter derrotado o “Barcelona” daquela longínqua região rural.

Ao meu avô, só restou o trabalho de ter que se deslocar com seu caminhão até o local onde se recusou a nos transportar, mas, desta feita, com grande animação, pois, ao invés de ver seu rebanho diminuir, trouxe para a sua invernada mais um garrote.

Machadinho
Enviado por Machadinho em 01/02/2011
Reeditado em 01/02/2011
Código do texto: T2765728