O Caso do Aparelho de Audição

I

Este caso aconteceu numa das Varas do Trabalho do Fórum de Passos. Foi baseado e inspirado no relato do Excelentíssimo Juiz do Trabalho, Dr. Marcos César Leão, publicado na seção “Causos” do Jornal da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 3ª Região, número 57, Out/Nov/Dez de 2007.

Vamos ao caso.

II

Há algum tempo que a noite descera completamente sobre a maior parte das cidades e terras localizadas no sudoeste de Minas. Observando os ponteiros do seu relógio de pulso, percebera o juiz que já se passara das vinte horas e trinta minutos. Àquela hora tardia – calculara ele – teria que começar a buscar em si mesmo e em Deus a força e a paciência necessária para conseguir suportar aquela última instrução processual do dia.

Conforme informado pelo próprio meritíssimo, já se encontrava ele naquele momento bastante afadigado e pilotando meio que “por instrumentos” a sua “aeronave” das audiências, tal o nível de cansaço que o abatera.

O juiz já se achava em verdade a exatas dezoito horas dentro daquela sala de audiências. Durante toda aquela longa jornada de trabalho vira entrar e sair dali um sem número de pessoas, reclamantes e reclamados, testemunhas, advogados, etc.

Algumas poucas vezes, entretanto - entre uma audiência e outra – levantara-se o suficiente apenas para esticar um pouco as pernas. Caminhara até o banheiro ou à cozinha da Secretaria e bebera o resto de um café frio que ali encontrara.

Tomando de um processo sobre a mesa, recordara-se que naquela última audiência do dia o reclamante era um velho e maltrapilho garimpeiro. Na última vez em que ali estivera, o homem adentrara a sala juntamente com o seu procurador. Requeria ele um vínculo empregatício por nada menos do que quinze anos de trabalho realizado num garimpo da região.

Nesta ocasião, porém, seu advogado fizera absoluta questão de se apresentar alguns minutos antes de iniciada a sessão para encomendar aquela “alma infeliz”: informara ao juiz acerca de uns graves problemas físicos e – principalmente - mentais pelos quais estaria passando o seu cliente naquele momento da vida e pedira ao meritíssimo que tivesse paciência com os modos e o jeito um tanto esquisitos do referido garimpeiro.

Entretanto, tudo viera ocorrendo outra vez da maneira mais razoável e perfeitamente normal, exceto pelo cansaço que àquela hora tardia começara a se irradiar entre as pessoas e a querer conduzi-las até o sonolento mundo de Hipnos e Morfeu! Inicialmente o meritíssimo ouvira as partes e em seguida as testemunhas, estas – como não podia deixar de ser - num total de três para cada lado!

Porém - num determinado momento daquela longa e cansativa audição – chegara o juiz as suas próprias conclusões à respeito do pedido do reclamante. Depois de ouvir o depoimento das testemunhas e compulsar exaustivamente os documentos juntados aos autos, firmara-se definitivamente na idéia de que seria bastante improvável – senão impossível mesmo! – que viesse a confirmar para o autor aquele vínculo empregatício.

Assim, decidira-se o juiz naquele momento a lançar uma bombinha ou - como ele mesmo denominou - um rojão no espaço aéreo daquela sala de audiências: uma proposta de acordo que - conforme acreditava – estaria bastante equilibrada para ambas as partes e não feriria o direito de nenhuma delas.

- Senhores – volveu-se calmamente o juiz na direção dos presentes. Depois de ter ouvido as partes e testemunhas e consultado os documentos juntados com a inicial e a defesa, acredito que o valor de novecentos reais estaria como uma excelente proposta de acordo para ambas as partes e para que encerrássemos de vez a presente discussão e nos dirigíssemos tranqüilamente para o aconchego dos nossos lares! O que senhor acha dessa proposta, senhor Fulano de tal - perguntou o juiz se dirigindo naquele momento diretamente ao garimpeiro.

O reclamante encarou fixamente o meritíssimo por alguns segundos – e veja o leitor que além de apresentar um dos olhos doentiamente entreaberto, aquele garimpeiro mantinha o seu dedo indicador meio que apontado aos céus e como a pedir ao Senhor que se apresentasse naquela sala e lhe fizesse justiça com as suas próprias e divinas mãos - e respondeu sem pestanejar e para o mais franco desespero de todos os que ali se achavam presentes:

- Eu quero é que esse juiz enfie esses novecentos reais bem no centro do seu...

III

O mínimo que se pode dizer nesse momento é que a sala de audiências praticamente desabou. Veio abaixo e trouxe consigo a Deusa da Justiça e os pratos da balança e tudo o mais que fora utilizado para enfeitar a sua divina imagem!

Os classistas que normalmente tinham a função de colaborar com o Juízo na composição dos acordos, imediatamente se ergueram assustados das suas cadeiras. Não esperavam que o reclamante apresentasse aquela reação extremada.

O advogado do garimpeiro também se levantou e - ao mesmo tempo em que advertia e repreendia tenazmente o seu cliente abilolado – se pôs a repetir como um papagaio caduco um insistente e inútil pedido de desculpas ao juiz. Naquela hora até mesmo as testemunhas traziam no rosto um sorriso amarelo e maroto. Procuravam ocultar as faces com as mãos e dificultar que o meritíssimo lhes observasse o riso.

Todos então se puseram a aguardar o início da “tempestade”, dos “trovões” e do “vendaval” que supostamente estariam se formando sobre o acento da cadeira do juiz e que certamente se dirigiriam na direção do reclamante. Afinal – acreditavam – tão certo quanto dois e dois são quatro era o fato de que na manhã seguinte aquele garimpeiro maluco veria o Sol nascer quadrado. Ah, se veria!

Mas enquanto tudo isso acontecia, o juiz permanecera cabisbaixo e calado. Pensava em quão difícil podia se tornar a vida de um julgador, principalmente no final de um cansativo dia de trabalho. Àquela hora da noite sua primeira vontade fora de fato a de determinar o imediato encarceramento do garimpeiro, não se importando e nem levando em consideração a citada maluquice ou os problemas mentais e pessoais pelos quais estaria passando aquele indivíduo.

No entanto, teve o juiz naqueles poucos segundos a capacidade de coordenar em sua mente uma série de outras idéias e questões relacionadas a tudo o que estivera vivendo durante aquele dia.

Por um lado se apresentava na sua frente um sujeito no mínimo inconseqüente de suas ações e que possivelmente agira daquela forma num rompante ou impulso inesperado e sem que tivesse tido tempo para pensar melhor no que iria fazer; por outro, não poderia deixar que aquele ato de desrespeito para com o Juízo transcorresse em branco diante de todas aquelas pessoas. Afinal – calculara também - como ficaria o respeito e a dignidade do seu cargo público se deixasse de agir naquela ocasião?

Permaneceu por alguns segundos num profundo e absorto silêncio que lhe pareceu uma eternidade. Durante todo aquele tempo só se ouvia na sala a respiração ofegante da datilógrafa de audiências e o zum-zum-zum leve de uma mosca rodopiando em círculos cada vez mais concêntricos que se dirigiam do teto ao chão da sala.

Em seguida, porém, parecera nascer outro sentimento na alma do juiz. De acordo com as suas próprias afirmações, pareceu-lhe que um facho de luz principiara a se irradiar diretamente do teto do edifício da Justiça na sua direção e a indicar exatamente o que deveria fazer naquela situação.

Daí a pouco ele sentiu que aquele feixe iluminado parara subitamente sobre a sua cabeça fazendo com que ele se recordasse de um velho comercial muitas vezes entrevisto na televisão de sua própria casa. Levantou então a cabeça e – encarando frente a frente os olhos meio abertos daquele garimpeiro esquisito – disse-lhe:

- Seu Fulano de Tal: fique sabendo que isto que o senhor acaba de fazer nesse recinto foi de fato uma ação da maior gravidade. Mais do que a mim, o senhor atentou principalmente foi contra a dignidade da Justiça e de todo o Poder Judiciário. Mas eu também vejo que o senhor é de fato um homem de muita sorte ou que no mínimo acordou com o pé direito nessa manhã. Pois justamente hoje estou sem o meu aparelho de audição de uso invisível e próprio para quem escuta, mas não compreende muito bem as palavras. Hoje - exatamente hoje, insisto em repetir! - eu me esqueci de trazer o meu aparelhinho de audição, o que me impediu completamente de compreender todas as palavras que o senhor acaba de me dirigir. Entretanto, meu caro - se com aquele aparelhinho eu aqui estivesse - não sei o que poderia lhe aconteceria! Não sei mesmo...

Por precaução a audiência foi imediatamente encerrada e cada um dos presentes se dirigiu a passos largos e sonolentos para o seu respectivo lar.

Nos dias e semanas que se seguiram tudo ocorreu exatamente conforme o esperado pelo juiz: o reclamante não teve o seu vínculo empregatício reconhecido na sentença de primeiro grau, tendo sido esta posteriormente confirmada pelo Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região.

Em verdade – meus companheiros - o único desejo que de fato não se confirmou e nem se satisfez naquela cansativa audiência de instrução fora a terrível ameaça do garimpeiro enlouquecido a respeito dos novecentos reais e do nosso engenhoso juiz...

Graças a Deus, aliás!