COMPASSO DE ESPERA

                            

Parto sempre do princípio de que um quem conta um conto, aumenta um ponto. E assim, deixo para vocês identificarem ou não, a veracidade do que conto. 

Há muitos e muitos anos... minha tia e outras pessoas estavam reunidas para um pequeno recital na casa principal da fazenda São José, construída nos áureos tempos do café na região do Vale do Paraíba, tendo Dona Marina, como anfitriã. Ela era uma senhorinha altiva, e na época, devia beirar os 60 anos. Mas, destacava-se dos demais presentes.

Digo senhorinha, porque sua estatura não atingia um metro e meio. Tinha uma postura impecável, além de provida de incontáveis dotes. Um encanto de criatura. Seu nome... vamos chamá-la de Marina Tornello. Procedia de tradicional família italiana. Sua fala carregava um pouco do toque ‘cantado’ dos italianos, mas nada exagerado.

Contou ao grupo presente que desde criança, o piano havia sido sua paixão. Periodicamente fazia reuniões musicais e literárias para os amigos mais próximos. Por inúmeras vezes, em algumas creches ou escolas de crianças carentes, abandonadas. Acreditava que poderia ser um alento para suas almas. E talvez, a única oportunidade para entrarem em contato com a música clássica e alguns contos literários. Queria sensibilizar aqueles pequenos ‘ouvidos’.

Certo dia, o Senhor Quincas, um dos empregados da fazenda, trouxe-lhe um envelope, prosseguiu ela. Abriu-o e retirou do seu interior uma partitura intitulada: “Compasso de Espera”. Não existia indicação do remetente. Obviamente não queria identificar-se.

A partir daí, essa composição passou a fazer parte do seu repertório nos recitais. A melodia possuía um ritmo forte e ao mesmo tempo, suave. Capaz de ‘tocar’ até o coração do capataz da fazenda, um homem de atitudes frias, entorpecidas, relatava minha tia.

Tal fato tornou-se bastante conhecido entre as pessoas que freqüentavam a casa. Contudo, ninguém jamais avaliou o quanto a melodia havia penetrado em sua alma, passando mesmo a ser sua companheira na espera da realização de um sonho.

O tempo ali, fez sua passagem suavemente. A Senhora Marina continuava com seu semblante sereno, porém sem aquele tom róseo na face. Os cabelos, já quase todos brancos prendiam-se à nuca de forma mais simples, natural, mas sempre imponente. A imagem da desesperança jamais tomou posse de sua fisionomia. Era como se o futuro ainda a aguardasse.

Numa certa estação do inverno, no momento do início de mais um recital, estava minha tia  também presente, quando João, o então filho do Sr. Quincas, entregou-lhe desta vez, não um envelope, mas um ramalhete de rosas vermelhas.

- “Quem me enviou estas rosas, João?” Ouvimos então, a Senhora Marina perguntar-lhe.

-“Fui eu, respondeu-lhe Jonas, num tom bastante sóbrio, porém delicado.”

A senhora Marina empalideceu com a visão, prosseguia minha tia. Estava ‘vis-à-vis’ de seu amor mais secreto. No instante em que o conheceu e se apaixonou, soube-o casado. Guardou para si aquele sentimento. Como não era de seu feitio desistir, continuou a jornada conforme o destino lhe assinalava. Um segredo guardado à sete chaves...

Investiu grande parte de sua vida em benefício de pequenas e desamparadas criaturas e as viu tornarem-se adultas, muitas delas, hoje casadas.  Ainda era capaz de ouvir as pequeninas vozes na sua sala ou no salão da creche ao som do piano. Todas haviam aprendido a cantar e a ouvir lindas histórias.

Jonas retomou a palavra, em meio ao silêncio constrangedor.  Há seis meses ficara viúvo. Pediu-lhe perdão pela ousadia. Mas era imprescindível vê-la naquele momento.

A senhora olhou em nossa direção e gentilmente pediu licença para ausentar-se por uns minutos. Os presentes permaneceram tão mudos, quanto surpresos e puderam presenciar os dois sentarem-se à mesa posta junto à primavera que se enrolava em tons verde e laranja na pérgula, enquanto o chá era servido.

Parecia não existir mais ninguém no cenário, conforme observação de minha tia. Tampouco deram mostra de estranheza ao constatarem os cabelos brancos, os corpos levemente arqueados e os diversos sulcos que marcavam seus rostos. Apenas olhavam-se profundamente, como se o tempo não tivesse diluído o frescor da juventude.



heleida nobrega
Enviado por heleida nobrega em 16/01/2011
Código do texto: T2733022
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.