O Caso do Burro Fugido

I

Prezado amigo e leitor: vou lhe contar um caso muito interessante ocorrido com um compadre meu residente no bairro Goiânia, o agora tão famoso e conhecido “Manuel do burro”.

Antes, porém, que dêem início à leitura dessa instigante narrativa, convém que eu lhes faça um reparo e um aparte: o primeiro é para comentar que tudo o que vão conhecer a partir desse momento vai como deveras aconteceu, sem que eu tenha colocado ali sequer a pontinha do meu dedo mindinho para fazer aumentar o volume dessa história.

O segundo é para que situemos o presente caso diante de alguns importantes fatos ocorridos naqueles anos setenta, o que de certa forma preenche e explica muitas das lacunas existentes nesse texto.

Então vamos lá!

Todos os acontecimentos que aqui vão narrados transcorreram na década de setenta, mais especificamente no ano de mil novecentos e setenta e cinco. Nos meados dessa década começáramos já a suspeitar que algumas das boas coisas da vida haviam literalmente ficado para trás embaçadas na neblina do tempo. Dou-lhes como exemplo aquele placar de 4 a 1 na vitória da seleção brasileira sobre a equipe da Itália no último jogo do Mundial de 1970.

Aquele gol magistral do lateral-direito Carlos Alberto Torres parecia de fato que seria capaz de transportar todo o povo brasileiro ao topo do mundo, num momento de glória e exuberância da nossa gente: depois de um perfeito “olé”, Clodoaldo cruzou a pelota para Rivelino que imediatamente lançou Jairzinho na ponta esquerda. Jairzinho despachou a redonda no rumo do Pelé que fez a imediata ligação a Carlos Alberto Torres. Carlos Alberto – o nosso capitão do Tri! – finalmente balançou a rede do goleiro Albertosi da seleção italiana de futebol.

Mas aquela década guardaria também alguns dos nossos piores pesadelos: o suposto “milagre econômico” já não se mostrava tão eficiente e milagroso quanto os nossos governantes o imaginavam ou pelo menos quanto queriam fazer com que acreditássemos que ele de fato estivesse. Começávamos a conviver com o fantasma de uma grande recessão que se estenderia posteriormente por toda a década seguinte.

Começara a se tornar bastante difícil encontrar um trabalho qualquer e os bons empregos já não surgiam com tanta freqüência. Por outro lado ainda distávamos muito dos festivos anos da reabertura política e do tão aguardado retorno de grande parte daqueles que de uma forma ou de outra haviam sido abandonados e excluídos pelos nossos governantes. Só mais tarde – muitos anos depois, aliás - é que iríamos começar a ter a verdadeira noção do preço pago durante todos aqueles anos de “chumbo”. Muitos dos nossos jamais voltariam a sentir a terna quentura do Sol tropical no país do “ame-o ou deixe-o”. E vários deles haveriam de ter feito de fato as suas últimas e solitárias viagens nos porões da ditadura.

Em meados daquela década, portanto, o meu compadre Manuel trabalhava como jardineiro na residência de certo senhor Malaquias, em Belo Horizonte. Os dois homens residiam em ruas próximas no bairro Goiânia e – além da já citada dificuldade de encontrar empregos que começara igualmente a assolar os trabalhadores da Capital mineira - fora esta a principal razão que levara o senhor Manuel a buscar trabalho nas proximidades de sua casa.

II

Esse tal Malaquias era homem de muita desordem tanto em sua vida pessoal e íntima quanto em relação aos seus bens e a sua vida social. Foi por volta dessa época, por exemplo, que a digníssima esposa do Malaquias, talvez o seu maior “bem” – uma chica mui guapa chamada respeitosamente de Dona Antonieta de Barros - acertara no marido um belo chute no “traseiro” e o homem se vira de repente meio que atordoado e perdido diante do caos e da desordem que se instalaram em sua vida no decorrer daquela separação litigiosa.

Fora este também um dos motivos que fizera com que o senhor Malaquias se esquecesse de cumprir com muitos dos seus deveres civis e com suas obrigações sociais, inclusive aquelas concernentes ao pagamento dos salários devidos a vários de seus empregados.

Entre estes últimos encontrava-se o nosso Manuel que - Jardineiro por gosto e por profissão – realizava diariamente e com o cuidado necessário a poda das flores, da grama e de alguns coqueirinhos ornamentais que enfeitavam os jardins da vistosa residência do seu empregador.

No primeiro mês de atraso dos salários, Manuel se inquietou um pouco, mas suportou com firmeza as suas dificuldades. Afinal – pensara o homem – a gente às vezes sofre por demais frente aos desvarios e dissabores que uns temporais e umas ventanias traiçoeiras nos causam. Tais fatos costumam atribular até mesmo os espíritos mais joviais e equilibrados, diminuindo - e muitas vezes apagando completamente - a memória das obrigações que temos para com os nossos semelhantes.

Viera o segundo mês – porém - e nada. Tudo continuara na mesma: nem cheiro de pagamento e nem uma simples palavra de explicação pulou para fora da boca do senhor Malaquias. O homem não dava sinal de vida e começara mesmo a se esconder e a evitar o seu vizinho. Quando o encontrava por acaso nalguma quitanda do bairro, era o primeiro a tentar se fazer invisível: atravessava rapidamente para a calçada oposta e adentrava num armazém ou outro comércio qualquer que se achasse com as portas abertas, tudo com o único objetivo de evitar ou retardar o confronto com o seu empregado.

Era em sua casa – porém – no contato diário de empregado e empregador que Malaquias não arranjava jeito de evitar o seu Manuel: ali o homem engolia em seco a saliva que lhe enchia a boca, disfarçava o tom tremido da voz e se dispunha a falar de tudo quanto era assunto e lorota que se espalhava pelo bairro, menos a respeito do pagamento dos salários atrasados do seu vizinho: era um tal de comentar acerca da Lua e suas influências sobre a poda das flores, sobre a mulherada casadoira do bairro que não tirava os olhos de si e de sua fortuna ou ainda de seu time de futebol que insistia em não ganhar mais nem um joguinho. Mas sobre o salário do Manuel, nada!

No iniciozinho do terceiro mês – após muito pensar e matutar por demais - Manuel percebeu que não teria mesmo outro jeito de resolver a questão senão indo cobrar os seus direitos na Justiça do Trabalho. Afinal – pensara ele - apesar de sempre terem sido bons vizinhos e excelentes camaradas em algumas ocasiões, eram também patrão e empregado e não ficava bem pra nenhum dos dois continuar a manter aquela esdrúxula situação.

III

Assim - alguns dias depois de dar a entrada dos seus papéis na Justiça - Malaquias e Manuel compareceram à primeira audiência de conciliação e julgamento. Naquela época as Varas do Trabalho ainda eram chamadas pelo nome de Juntas de Conciliação e Julgamento, mas para os efeitos do presente relato as designaremos simplesmente com o seu nome atual: Varas do Trabalho.

Naquela primeira audiência, portanto, aconteceu um pouco de tudo e de tudo um pouco: houve algum bate-boca, um bocado de xingamento e outro tanto de nervosismo e ansiedade de ambas as partes. Entretanto, coube ao juiz saber contornar aquela situação e conduzi-la aparentemente a um final feliz.

Ficara entabulado entre os dois homens - agora não mais tão bons vizinhos como antigamente - a seguinte combinação: o reclamado, o tal do senhor Malaquias, pagava certa quantia em audiência e ainda se comprometia a entregar um “burrico velho” que possuía como complemento do pagamento de sua dívida para com o jardineiro Manuel.

IV

Imagino que nesse ponto do enredo já deverá ter surgido a seguinte questão na mente de leitores e leitoras: o quê afinal vem fazer nessa história a figura de um burro e – principalmente - de um burro já bastante “idoso”?

Entretanto, devo aproveitar a presente ocasião e discorrer um pouco sobre a dura existência de burros e burricos pelo mundo afora, pois imagino que nem raramente haveremos de encontrar em literatura qualquer ligeiro comentário à respeito dessas humildes criaturas de Deus e que são, afinal, os verdadeiros descendentes e os filhos legítimos não menos ilustres dos famosos “Burrinho de Balãao” e “Asno de Ouro”, ambos oficialmente registrados no Livro Sagrado e na antiga história da humanidade.

Mas um burro - meus companheiros – um burro nada mais é do que um animal de quatro patas conhecido por sua variada nomenclatura: asno, jerico, jegue, jumento, etc. O bicho é um mamífero perissodátilo de tamanho médio, com focinho e orelhas compridas e ainda bastante utilizado nos quatro cantos desse mundo como um animal de carga.

Devo esclarecer que no presente caso o burro aparentava estar numa idade bastante avançada, conforme pudemos constatar algum tempo depois ao observarmos a quantidade de pelos brancos e enrijecidos que começavam a se desgarrar do lombo cansado do animal.

Mas nada do que foi registrado acima chegara a ficar ou a permanecer por muito tempo na cabeça do meu compadre Manuel. Este prontamente aceitou a proposta que lhe fora feita por seu ex-patrão. O que lhe ocorreu deveras e imediatamente fora a nítida percepção de que aquele burrico poderia lhe proporcionar certa quantidade de “carretos" na região onde residia. E esse – calculou o homem bastante satisfeito com seu pensamento - esse era um jeito seguro e honesto de ganhar a vida e garantir o sustento próprio e o de sua família, inclusive sem que se fizesse necessário tornar-se dependente de um empregador ou ter que engolir “sapos” de patrões do feitio do senhor Malaquias.

Entretanto – e para que efetivamente conseguisse chegar ao seu objetivo - deveria o reclamante primeiramente tomar posse do animal e adquirir na região em que vivia uma carroçinha velha ou de segunda mão. Ai então era alimentar o bichinho e despachá-lo à lida no transporte de pessoas ou objetos como móveis e sacos de cimento.

Mas eis que nesse ponto surge um problema em nossa história.

Na verdade, um problemão!

V

No dia que lhe fora marcado para buscar o burrico, Manuel se dirigiu logo cedo até a casa do senhor Malaquias. Chegando lá, porém, teve uma desagradável surpresa: assim que tocou a campainha, Malaquias surgiu no portão e informou num tom seco e conveniente que o dito burrinho houvera escapado de sua casa na madrugada passada. Seu filho mais novo – continuara Malaquias - um garoto arteiro e sapeca de nome Pitolomeu, deixara imprevisivelmente abertos os portões do alojamento dos animais e o infeliz fugira incontinenti na calada da noite. Provavelmente se perdera para sempre nesse mundão-de-nosso-Senhor-Jesus-Cristo...

VI

Assim que tomou conhecimento do fato, sua excelência o juiz achou por bem convocar aquelas duas criaturas – diga-se de passagem, o reclamante e o reclamado - para uma nova audiência. Seu objetivo era tentar por freio e ponto final naquela situação que ameaçava sair do controle e desandar completamente.

Desta forma - logo que os homens deram entrada na sala das audiências - o juiz lhes fez um breve relato acerca da situação atual do processo. Em seguida, virando-se para o reclamado, começou a questioná-lo almejando entender como se dera e se fizera possível a fuga do animal.

Malaquias gaguejou um bocado no início, mas daí a pouco pegou no tranco e pôs a língua na banguela: começou a explicar tranquilamente para o juiz acerca do “inevitável” sumiço do burro. De imediato o homem alegou que se tratava o presente acontecimento de um “excelente exemplo de caso fortuito". Segundo ele o “fortuito” nesse caso fora exatamente o fato de que o burrico fugira de forma totalmente imprevisível e, por isso mesmo, inevitável.

Ao juiz, entretanto, parecera que Malaquias estivera apenas a repetir como um papagaio idiota uma fórmula muito mal decorada para a presente ocasião. Toda aquela profusão de frases e palavras vazias de sentido e guardadas “na ponta da língua” cheirava ao juiz a uma perceptível trapaça e à ausência de verdadeiros argumentos.

Instado uma vez mais, Malaquias tentou sugerir ao meritíssimo uma nova explicação para a fuga do burrico. Concluiu mais que depressa - e com uma estranha sobriedade em suas palavras - que nesse fato em especial talvez houvesse ocorrido não um caso fortuito, mas em verdade um “problema de força maior”. Que a fuga do burrico – continuara o homem - poderia de fato ser até previsível - como insistia em dizer o juiz - mas que se tornara praticamente inevitável devido ao fato do seu filho mais novo ter deixado aberto um dos portões do alojamento dos animais.

Fora dessa forma que o burrico fugira e – conforme insistia em dizer o nosso prezado Malaquias – aquilo apresentava mesmo alguma semelhança com os ditos eventos referentes aos fenômenos da natureza e que fazem parte da chamada força maior, como as tempestades e os furacões. Pois afinal – concluiu o homem olhando ensimesmado nos olhos do juiz - o bichinho é ou não é parte integrante da natureza de Deus-Nosso-Senhor?

No final de toda aquela pendenga, porém, afirmara-lhe o juiz que ele deveria ter cuidado melhor do animal, já que o dito burrinho não mais lhe pertencia e que ele se comprometera na audiência anterior a entregá-lo são e salvo e com boa saúde nas mãos do reclamante Manuel.

Então, percebendo que a situação começara de fato a ficar completamente fora de controle, o juiz solicitou que os dois homens se aproximassem um pouco mais da mesa em que ele se encontrava e que prestassem a maior atenção às palavras que iria pronunciar. Requereu igualmente a concentração do datilógrafo de audiências e pediu que este registrasse na ata todas as determinações que iria começar a ditar nesse momento:

- Que – começara o juiz - face à audiência anterior e na qual o reclamado se comprometera a entregar ao reclamante um burrico de sua pertença; que - tendo em vista o fato de que o filho mais novo do reclamado tenha deixado ainda que “imprevisivelmente” aberto um dos portões do alojamento dos animais, criando a possibilidade “inevitável” de que o inocente burrico se escafedesse na calada da noite; e que – em face da “inevitável” fuga do referido burrinho – concedo ao reclamado Malaquias o “previsível” e “não evitável” prazo de 48 horas para que realize as suas próprias investigações no bairro onde reside e intente localizar de todas as formas possíveis o supracitado burro fugido. Que – caso o mesmo venha a ser encontrado – seja repassado de imediato às mãos do reclamante, o senhor Manuel, seu legítimo e atual proprietário. E – por último – que, findo o prazo anteriormente citado – continuara o juiz lançando sobre os dois homens um terrível olhar de ave de rapina irritada - se nenhuma parte do burro for de fato localizada - sua cabeça, as virilhas, uma das orelhas, as ancas, o lombo ou qualquer das patinhas do referido animal – deverá a Secretaria da Vara expedir imediato Mandado para que sejam penhorados e avaliados tantos bens do reclamado quantos forem necessários e suficientes para a garantia da presente execução e para a satisfação do débito, tudo conforme os dados constantes da petição inicial e os cálculos de folhas tais e tais dos presentes autos...

VII

Amigo, vou lhe dizer uma coisa - uma coisinha de nada - do tamanho de uma amorinha muito vermelha que daqui eu consigo ver no alpendre da casa do senhor Malaquias: eu é que não queria estar debaixo do olhar de navalha daquele meritíssimo!

Mas também vou lhe afirmar outra coisa: que tudo acabara acontecendo exatamente como o “predito” pelo juiz na sua ata de audiência, como se bola de cristal ele possuísse deveras: o burro - meu Deus! – esse nem Nossa Senhora, nem São José e nem São Francisco de Assis acharam jeito de encontrar. Nem por inteiro e nem aos pedaços, como havia suposto o juiz: nada mesmo daquela infeliz criatura fora de fato localizada nas redondezas ou nas proximidades da casa do ilustre Malaquias.

Portanto, na semana seguinte um funcionário da Secretaria expediu o referido mandado de penhora de bens do reclamado, tudo conforme as determinações constantes da ata de audiência. Em seu cumprimento a senhora oficiala de justiça dirigiu-se logo pela manhã ao endereço indicado, procedendo ao registro dos seguintes e possíveis bens a serem penhorados na residência do reclamado Malaquias: uma televisão de vinte e quatro polegadas, um aparelho de som e uma coleção completa de LP's (long play) de grandes intérpretes e compositores da nossa autêntica música sertaneja, tudo no mais perfeito estado de uso e conservação conforme apurou e fez constar em certidão a nossa boa e competente oficiala.

A prestativa servidora ainda comunicou ao senhor Malaquias que a partir daquele momento o Juízo lhe concedia o prazo de quarenta e oito horas para que procedesse ao pagamento do restante de sua dívida ou para que indicasse outros bens à penhora, sob pena de se ver expropriado daqueles ali registrados. Segundo lhe informara a oficiala, estes seriam oportunamente leiloados em data, hora e local designados pelo excelentíssimo juiz.

Amigos e leitores: não deu outra! As palavras da oficiala foram suficientemente convincentes para fazer com que na tarde do dia seguinte o burro fugido reaparecesse muito contente, bem de saúde e vivinho da silva – graças a Deus, aliás! - apesar da sua idade avançada.

O bichinho ressurgira a zurrar e a trotar naquele seu passinho manso e miúdo pelas ruas empoeiradas do bairro Goiânia, como se renascido das cinzas tivesse sido. Exatamente como aquela fabulosa ave mitológica – a Fênix – que, segundo consta, ressurgia das próprias cinzas todas as vezes que se destruía num processo de autocombustão.

O mesmo ocorrera com o nosso humilde burrico de orelhas murchas. No dia seguinte já se achava nas mãos do seu novo dono e proprietário, meu compadre Manuel. E este - segundo igualmente consta nos anais do bairro Goiânia – reservara todo aquele dia para passear tranquilamente com sua família pelas ruas do bairro.

A todo o momento era visto a transitar muito sorridente e alegre, sentado na boléia de uma velha carroçinha que adquirira por um-quase-nada num “topa tudo” localizado na conhecida Avenida Tereza Cristina, na região central de Belo Horizonte...

Foi assim - meus amigos – foi exatamente dessa maneira que se findou esse interessante caso do burro fugido!