LIVRE PARA SER FELIZ

LIVRE PARA SER FELIZ

Todos direitos reservados a Igor P. Gonçalves

Era tudo silêncio naquela noite. Mamãe costurava, sentada numa poltrona perto da porta. Eu brincava com minha boneca na tapete. Apesar da pouca idade, notava a aflição de minha mãe. Procurei não fazer perguntas, brincava apenas, procurando não deixá-la nervosa.

Peguei um livro e comecei a lê-lo para Aninha, minha boneca. Via o ato de ler como uma forma de poder fugir da realidade, me refugiar entre os mundos encantados, os príncipes e princesas, as bonecas que falavam e os animais que tinham os mesmos sentimentos humanos.

Um clarão surgiu na janela, e um ruído agudo rasgou o silêncio que pairava sobre a nossa casa. Com o susto, mamãe espetou o dedo, que começou a sangrar. Colocou-o na boca, levantou-se da poltrona e caminhou até a janela. Tirou o dedo da boca e fechou a janela com as cortinas.

__ Marina, já está na hora de dormir!__ disse minha mãe, colocando a mãe sobre meu ombro.

Como era boa aquela sensação. Adorava quando ela colocava suas mãos sobre mim. Me sentia segura, embalada; protegida por um anjo. Era mágico aquele momento. Sentia-me no meu próprio conto de fadas. Eu era uma princesa e minha mãe uma rainha. Minha rainha. Uma rainha totalmente fora dos padrões: no lugar da coroa, seus belos cabelos negros muito bem penteados e presos em um rabo de cavalo; no lugar do vestido glorioso cuidadosamente bordado a fios de ouro, sua simples roupa, muito bem conserva e passada; no lugar da gargantilha de diamantes, seu cordão com a medalha de Nossa Senhora das Graças; e no lugar dos sapatos luxuosos, suas humildes sandálias, ganhadas de Tio Valdomiro no Natal passado, também em ótimo estado.

Mamãe seria minha eterna rainha. Tão simples, tão dedicada à família e a casa. A casa de três cômodos em que morávamos de aluguel era muito bem arrumada, com o chão sempre limpo encerado, os móveis sem nenhuma poeira, os paninhos sempre branquinhos.

De repente voltei à realidade e compreendi p porquê dela mandar-me dormir.

Já passava das nove horas da noite e meu pai ainda não havia chegado do trabalho. Quando isso acontecia, sabia que teria briga em casa. Ele trabalhava na construção de edifícios em outro bairro de Curitiba.

Geralmente no fim da tarde, ao sair do trabalho, ele e os outros pedreiros iam para um bar e bebiam até tarde da noite. E quando chegava em casa destruía meu conto de fadas quando brigava e batia em minha mãe. Me lançava numa verdadeira história de terror.

E naquela noite não foi diferente.

Papai chegou muito bêbado em casa, eu já estava deitada no quarto. Levantei e comecei a espiar pela brecha da porta entreaberta.

Sentou na poltrona e ficou parado, olhando para a parede, perdido nas alucinações da embriagues.

__ Vai jantar, Bernardo?__ perguntou mamãe, meio acanhada.

__ Claro que vou. Pra quê que você acha que eu coloco comida dentre dessa casa?

Sem responder nada, ela foi até o fogão e colocou a comida para esquentar.

Porque minha mãe era assim? Anos e anos ouvindo ignorâncias do marido. Nunca revidou uma só grosseria ou agressão dele.

Lembrei de uma passagem da Bíblia em que diz que a Virgem Maria guardava todas as palavras que lhe diziam e as meditava no coração. Será que minha mãe era uma santa? Será que tinha vocação para o sofrimento?

Nesses momentos eu sentia raiva dela. Porque não reagia? Porque não pegava a primeira coisa que visse pela frente e não tacava na cabeça dele? Porque não ia a uma delegacia?

Mais tarde, na minha maturidade entendi que toda essa omissão de minha mãe era por mim. Era pra me preservar, tinha medo de reagir e ser morta.

“E se eu morrer, o que seria da minha pequena Maria?”, pensava ela. “Provavelmente seria abandonada pelo pai, entregue em um abrigo, ou na melhor das hipóteses, entregue a parentes.”

Como minha mãe sofria. Entregava-se em martírio ao seu próprio carrasco unicamente por mim. “È uma santa com certeza”, eu pensava.

Entregou o prato de comida ao meu pai com um pano de prato por baixo, por causa da quentura. A casa era pequena, a sala era cozinha ao mesmo tempo, e não havia espaço para mesa. Por isso comíamos com o prato na mão.

__ A comida tá sem sal!__ ele reclamou aos gritos.

Quando estava bêbado sempre procurava um motivo para começar uma briga e agredir minha mãe, que sempre tentava contornar a situação. Mas muitas vezes não conseguia.

Calmamente ela pegou e levou o saleiro para ele.

Preocupada por ele Ter colocado muito sal na comida, ela disse:

__ Bernardo, cuidado com a pressão!

__ Não se meta na minha vida!__ gritou ele, impacientemente. Jogando mais sal no prato.

Mamãe sentiu-se impotente, humilhada; sentou-se numa cadeira perto do fogão. Doeu no fundo da minha alma vê-la daquele jeito, fracassada, derrotada pela vida; presa a um casamento falido. Devia estar exausta, trabalhara muito durante o dia. Além dos trabalhos domésticos teve que carregar água em várias viagens da casa de Dona Lourdes da rua de trás. Mas tinha que esperar meu pai terminar de jantar para poder dormir. Ele não aceitava que ela fosse dormir antes dele, dizia que o único que tinha o direito de se sentir cansado naquela casa era ele, pois trabalhava fora. Mal sabia ele o duro que mamãe dava para cuidar da casa, carregar água e educar um filha de 10 anos.

__ Não agüento mais comer ovo nesta casa. Sinto até vergonha de abrir a marmita na frente dos meus colegas.

__ Bernardo, há quase duas semanas você não compra carne pra de casa.

Senti uma atitude de coragem naquelas palavras. Foram as primeiras palavras energéticas que ouvi minha mãe dirigir ao meu pai. Será que ela cansara de meditar as ignorância dele no coração? Será que daquele dia em diante ela deixaria de dar a outra face para o carrasco bater?

Foi a primeira vez não senti pena de minha mãe, mas sim orgulho.

__ O que está querendo dizer com isso?__ desse meu pai, levantando-se com o prato na mãe__ Que eu não coloco comida dentro de casa?

__ Não, Bernardo!__ disse ela, levantando-se da cadeira.

_ Não tá satisfeita vai embora__ levantou o prato__ Some da minha vida.

Prevendo o que ele ia fazer com o prato, fechei os olhos, enquanto meu coração acelerava. Ouvi o barulho do prato de vidro de estilhaçando e um grito abafado de minha mãe.

Meu corpo todo estremeceu. Mas não tive coragem de abrir os olhos. Imaginei minha mãe caída no chão, desmaiada, ou até morta; com o rosto sangrando, desfigurados pelo prato de vidro.

Senti um frio na barriga, mas criei coragem e abri o olho direito bem devagar. Vi minha mãe abaixada, com as mãos no rosto e meu pai em sua frente, em pé, cambaleando. A puxou pelos cabelos e pude ver que seu rosto não estava machucado. Ela devia Ter se abaixado para desviar do prato assassino. Me senti aliviada.

__ Me enfrente agora!__ disse ele, com os olhos fixos nela. Via o ódio estampado em seu rosto.

Deus um tapa no rosto dela.

Gritei. Foi como se o tapa fosse em mim. Chorei compulsivamente.

Mas ele não ligou para os meus gritos. Pegou minha mãe pelos braços e a jogou na poltrona, que virou com o impacto.

__ É hoje que eu te mato!__ Gritou ele, indo em direção a ela.

__ Bernardo, se acalma, vamos conversar. Nossa filha está nervosa!__ gritou mamãe, levantando-se do chão.

__ Não quero saber de conversa!

Segurou o pescoço dela com as duas mãos, enquanto rangia os dentes como um cachorro raivoso.

Dei outro grito. Algo dentro de mim, uma confusão de sentimentos me levou a fazer algo que me deixa surpresa até hoje.

Peguei um caneca de louça que ficava sempre na mesinha de cabeceira, abri a porta do quarto e joguei no meu pai.

__ Solta minha mãe!__ eu gritei.

Ao sentir o copo bater em sua cabeça, ele virou-se e olhou para mim furioso..

__ Garota abusada!__ ele gritou, vindo na minha direção.

Fiquei cega, sem reação. Tentei correr ,mas minhas pernas não saiam do lugar. Não me restava outra coisa a não ser esperar que ele me batesse. Fechei os olhos.

Quando senti suas mãos em meus ombros, ouvi o grito de mamãe:

_ Minha filha não!

Em seguida um barulho muito forte. Meu pai soltou as mãos de mim. Abri os olhos. O vi caído no chão. Olhei para minha mãe. Estava com uma tábua de cortar carne na mão., olhando desesperada para mim.

Me abraçou forte. Me apertou contra seu peito. Me senti saindo da história de terror; viajando em direção ao meu mundinho de fantasia, onde o medo não existia.

__ Ele nunca mais nos fará mal, meu amor!__ ela dizia, enquanto beijava meu rosto.

Olhei fixamente para ela. Já não via apenas uma rainha ou uma santa; via uma heroína. Minha heroína.

Foi a Segunda vez que tive orgulho dela, mais do que na primeira vez.

A abracei com força. Senti-me no colo de um anjo. A agarrei como se estivesse com medo de que ela fosse embora. Tinha medo de perdê-la, perder meu anjo da guarda para sempre.

Logo depois arrumamos algumas roupas numa bolsa, e fomos para a casa de Dona Marta, nossa vizinha que nos acolheu docemente.

No dia seguinte, fomos voltamos em casa e pegamos documentos e mais algumas roupas. Iríamos passar um tempo na casa de Dona Marta, pois minha mãe tinha medo de que meu pai nos fizesse alguma maldade.

Uma semana se passou e ele não voltara para casa desde o dia da briga. Mamãe decidiu voltar para casa. Dizia que não se sentia bem morando de favor na casa dos outros.

__ E se ele voltar, Beatriz?__ perguntou Dona Marta.

__ Se não voltou em uma semana, não volta mais, Dona Marta.

Mesmo com todas as insistências de nossa devotada vizinha voltamos para casa.

Mamãe começou a lavar roupa pra fora. Raramente caía água na nossa rua, então ela tinha que carregar água da casa de Dona Lourdes da rua de trás.

Eu chorava por dentro de vê-la trabalhando tanto, carregando água de tão longe, lavando tanta roupa não mão. Isso tudo para não deixar que me faltasse comida na mesa e material para os estudos.

Tentava ajudá-la. Mas ela não deixava.

__ Vá estudar! Enquanto eu tiver saúde seu único dever nesta casa será estudar__ dizia ela._ Tenho certeza de que um dia você irá retribuir tudo o que faço por você.

Sentia-me na obrigação de estudar, de aprender, de ler muito, ser saber mais e mais. De me formar, ser alguém na vida e dar uma boa vida para mamãe.

Passamos quase um anos naquela situação. De pagar o aluguel e ficar sem gás, de comprar o gás e ficar sem arroz, de ter o arroz e não ter o óleo.

Graças a ajuda de vizinhos não passamos por maiores privações.

Ao receber uma carta de minha mãe contando toda nossa situação, Tio Valdomiro nos mandou dinheiro para que fôssemos para a casa dele, em São Paulo. Lá ele iria nos ajudar até que mamãe conseguir um emprego.

Fomos para São Paulo, com o sonho de reconstruir nossas vidas lá. Não levamos nada além do que roupas e documentos. Depois de algum tempo minha mãe conseguiu emprego de faxineira na empresa em que Tio Valdomiro trabalhava. Conseguimos um vaga num colégio presbiteriano perto da trabalha dessa de casa.

Anos se passaram, meu amor e admiração por mamãe aumenta a cada dia. Continua sendo minha rainha, meu anjo da guarda, minha heroína.

Mau pai nunca mais apareceu. Não sei até quando carregarei essa grande mágoa que sinto por ele, de nos fazer sofrer tanto, de nos machucar a alma. Mamãe evita de falar dele comigo, pois sabe que me sinto muito mal.

Quando lembro dele, também lembro dos vilões dos contos que li, lembro do pais e dos maridos idealizados das histórias infantis. O via como o carrasco, pois nunca foi um bom pai, muito menos um bom marido. Ao invés de acolher a família debaixo dos braços, preferiu destruí-la aos poucos a socos e gritos. Não conseguiu nos destruir graças à coragem de minha mãe. Minha heroína.

“Heróis são pessoas que fizeram o que era necessário fazer, enfrentando as conseqüências”

(William Shakespeare)

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Igor P Gonçalves
Enviado por Igor P Gonçalves em 08/01/2011
Código do texto: T2716837
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