Regina Racco
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Moreninha, pequena e com cara de anjo, ainda por cima com cabelos encaracolados, cheio de cachinhos. Assim era Irene. Um verdadeiro anjinho.

Problemas na escola, problemas na rua onde morava. Culpa dos garotos, meninada terrível, sempre implicando com a coitadinha, pudera, tão linda... Pura inveja!

Cedo, começou a trabalhar fora. Melhor, assim não teria que conviver com aquela gentinha que só a aborrecia. Uns pestinhas. E afinal, já estava mesmo ficando mocinha.

Irene, a de cara de anjo. Sapeca como ninguém, levada a dar com o pau! Uma praga! Quebrara a janela da escola, arranhara o carro do "Seu" Matheus, na verdade era ela quem infernizava a vida da criançada na rua onde morava. Aprontou todas!

Não. Mentira... Ela não fizera nada, afinal Irene tem carinha de anjo, tão linda!

-Capacidade de sair inteira das merdas que faz, êta menina sem jeito!
Lamenta a mãe, cansada e temerosa.

-Deixa a menina! Ela é um anjo.
Profetiza o pai.

Anjo pode tudo? Ou tem um limite? Anjo merece tudo? Ou pelo fato de ser anjo seria lógico que ele, o anjo, se empenhasse mais, fosse sempre o melhor, o mais bondoso, o mais perfeito?

Irene subiu a Rua Teresa em Petrópolis, ainda menor. Menininha, bonitinha, o sorriso travesso. Aprendeu fácil vender as malhas coloridas, da centenas de lojinhas, se fez a melhor vendedora. Ficou conhecida, a da cara de anjo. Preferida pelos fregueses, um docinho.

-Irene não está?
-Não, foi ao Banco.
-Então volto depois...

E lá se vai o possível comprador ou compradora, perdendo-se entre as vitrines coloridas.

Ciumeira das colegas:
Onde já se viu?! Só para mostrar as roupas, cobrar, embrulhar, porque Irene?!

Talvez por causa da cara de anjo...

E talvez por esse mesmo motivo, Irene namorou do alto da Rua Tereza abaixo. Fosse outra e no mínimo alguém falaria mal, mas não Irene. Ela saia inteira, leve, fagueira. Tinha carinha de anjo, lembra-se? Anjo pode tudo.

Até mesmo as colegas ciumentas não conseguiam levar adiante uma fofoca, um disse-que-disse. Também elas, eram presas fáceis para Irene, a doce Irene.

Quando a Rua ficou sabendo de seu namoro com o Marcos, aí sim, pareceu que tudo iria desabar.Até então, todo perdoavam Irene, afinal, bobagenzinhas, besteirinhas, coisa de criança, e criança bonita, ainda por cima.

Já repararam que temos uma facilidade muito grande para perdoar as crianças bonitas? Quanto mais bonitas, mas nos derretemos por elas...

Mas, o Marcos?!

O pai se sentiu mal, teve que ser hospitalizado. A mãe só fez chorar e repetir como um velho disco quebrado: "Eu não disse?! Eu não disse?!"

Noites de discussões intermináveis.

-Irene não faça isso, vai acabar com sua vida.
-Acabar não, mãe, começar!
-Que futuro esse homem pode lhe dar? É casado, a esposa está grávida...

Irene dava de ombros, fazia cara de tédio. Afinal, o que deve unir um casal é ou não é o amor?

Ela e o Marcos se amavam, o que era mais importante então?! Será que era tão difícil assim para entenderem? Que gente insensível!

Marcos era assim, como um exemplo, na Rua Teresa. Apesar de seus vinte e poucos anos, já era casado, pai de um menino de quatro anos, sua esposa Eva, sua companheira na vida e no trabalho, estava novamente grávida. Muito ativa, era vista arrumando as vitrines, vendendo, encarando a viagem cansativa para São Paulo, sete horas para ir, sete para voltar, carregada de pacotes após andar por horas nas extensas ruas paulistanas atrás de novidades para a loja. Os pés inchados por conta da gravidez mas um belo sorriso no rosto. Aliás, também ela, Eva, era um bom exemplo. Parecia que nada pudesse abalar sua disposição.

Sucumbiu ao escândalo.

Todos sabendo. Marcos e Irene já estavam de caso há muito tempo. Ninguém sabia. Ninguém desconfiava. Até o dia fatídico:
Marcos deu uma bofetada em Irene em um bar da Rua Tereza, um dos mais movimentados. O motivo fora tão ridículo que no mesmo dia fizeram as pazes. Marcos havia encontrado Irene conversando e rindo muito, com um motorista de um dos ônibus que trazia compradores de outros Estados, o Anacleto.
 
Anacleto, velhote, crioulo, careca, falha no dente da frente, mas sempre de bom humor, não entendeu nada quando o fato aconteceu. Marcos entrou, empurrou Irene e a esbofeteou. Mas o povão que estava no bar entendeu tudo. E correu gente para os dois lados: Para o Alto da Serra e para a Rua do Imperador. O bochicho tinha nome e endereço: Irene, a menina linda, com carinha de anjo e o "Seu" Marcos, o dono de uma das maiores lojas da rua, o marido da Dona Eva, a que estava grávida.

Sofrimento para o Pai de Irene que passou mal, dizem que foi coisa no coração, sofrimento para a mãe que só chora e repete sem cessar: Eu não disse? Não disse? Não disse?

Sofrimento para a jovem gestante, que larga o marido, pega o filho e se vai, rumo ao Rio de Janeiro, para a casa dos pais. Pode-se dizer também que sofrimento para Marcos, porque ninguém sai impunemente de uma situação destas. E apesar de adorar Irene, sente a falta do filho...

Mas o tempo passa, abranda as dores, esfumaça os matizes, dá um ar de nobreza e legitimidade a qualquer situação... As fofocas diminuem e cessam, esquecidas embaixo de pilhas de novas notícias.

Irene, agora Dona Irene e Marcos, amasiados e felizes.

O dia a dia da Rua Tereza, o ir e vir dos compradores, comprar, vender... Gente de Vários Estados. O tempo amigo, empresta um ar confiável a tudo.  O Pai de Irene, recuperado, já fala com Marcos, até já executou um serviço de instalação elétrica na loja, cobrando bem baratinho, afinal, loja da filha. A mãe de Irene, veio uma tarde, trouxe bolo de aipim com coco. Até já sonha com um netinho.O povão se acostumou a ver Irene como dona da loja, senhora do dono.
 
É o tempo, agindo como verdadeiro mágico. Fica uma lembrança de que algo aconteceu, mas se esquece o quê. Se assim não fosse como explicar o retorno de tantos políticos corruptos ao poder? O povo lembra seus nomes, por isso vota, o porquê da fama, isso se perde no tempo...

E se o tempo é mágico, na Rua Teresa é mágico ao quadrado.  Tanta gente, de tantos lugares, como se representantes de todos os Estados estivessem ali em uma enorme confraternização, que nunca termina.  Gente que vem, gente que vai, novo dia, nova noite. As moças da Rua Teresa subindo a rua, nas manhãs Petropolitanas. Descendo a Rua à noite, ônibus de vários Estados chegando, partindo.

E uma manhã, no mesmo bar, o bar do escândalo, lembra-se? Pois esse mesmo. Outro escândalo abala as estruturas da cidade, pelo menos das imediações da Rua Teresa...

Era uma manhã nublada, o  russo (nome da neblina em Petrópolis) cobrindo tudo. Frio desgraçado, muitos agasalhos pesados, muito café quente e as rodinhas, rodinhas de empregados, donos de lojas, representantes, motoristas dos ônibus, o assombro, a notícia:

-Não fale uma coisa destas! Quando foi isso?!
-Ontem à noite.
-Que coisa! E o "Seu" Marcos?
-Parece que sumiu desde ontem, ninguém mais viu. Sei lá, "disque" vai vender a loja...
-Será? Bobagem, o povo esquece...
-Eu sei, mas que foi chato, ah, isso foi...
-Quem diria, a Dona Irene... Com aquele jeitinho de anjo...
-Pois não é?- Vai se confiar...

Os semblantes demonstrando sentimentos diversos, espanto, pena, assombro, certa ironia, algumas expressões que pareciam retratar: "Eu já sabia!"

-Mas, quem viu?
- Ora, todo mundo, ela gritou, brigou, ele queria impedir. Ela chamou o "Seu" Marcos de frouxo, bundão, deu até um empurrão nele.  Subiu no ônibus e se foi, só isso.
-Mas... O Anacleto? Tem certeza? Aquele velhote, crioulo e desdentado?!
-Pois não foi?! Disse que ia com ele para Pirapora, disse que tinha encontrado o amor de sua vida.
-Pois não foi?!

Regina Racco
15/09/1993