MEMÓRIAS DA INFÂNCIA
— Papai, porque paramos aqui?
— É para o papai mostrar onde ele nasceu e passou boa parte da infância. Está vendo aquela enorme moita de bambu do outro lado do rio?
— Sim, estou vendo.
— Pois é, a casa que nasci ficava pertinho dela. Vê aquela árvore a esquerda?
— Sim, é enorme. Que arvore é aquela?
— Uma amoreira. Papai costumava brincar nela. Seus galhos desciam até o chão, eu subia no alto de sua copa e descia escorregando pelos galhos. Já levei algumas surras da vovó por sujar a roupa com a tinta das amoras.
— Você não tinha videogame para brincar!?
— Não filho. Naquela época não existia nada disso, nem televisão existia ainda nestas redondezas. Quando olho essas terras, começa a desfilar na minha memória os bons e divertidos momentos que passei ali com meus irmãos e com amigos.
— O senhor deve guardar muitas lembranças dessa época...
— Sim, muitas lembranças...
Como poderia esquecer do meu cachorro “deserto”, paqueiro, fino, comprido e de orelhas grandes quase arrastando no chão, que apesar de medroso e preguiçoso, era muito atrevido e amável, tinha pavor de lagarto e tatu, mas, em compensação, era o terror dos gambás que vinham atacar o galinheiro... Da égua “roxinha”, que a Elza comprou e que fui o primeiro a montá-la e também o primeiro a descobrir que era “bardosa”, caindo alguns tombos no chão duro do carreador do sítio... Das tardes de domingos que passava nadando no ribeirão junto com os irmãos e amigos e da cobra que teimava em nadar no nosso espaço de lazer, que foi banida à “canga-pés”... Do dia-a-dia com uma lata d’água na cabeça, transportando água da mina para encher a caixa que abastecia a casa... Do dia em que resolveu ser equilibrista sobre a forquilha que suspendia o varal de arame farpado e que ficou pendurado pela cocha por longos minutos até a mãe vir socorrer... Do campinho onde todas as tarde participava das “peladas”... De quando todos se reuniam, inclusive os grandes para brincar de “feda”(esse termo se perdeu no tempo, nunca mais ouvi falar), ou “esconde-esconde”, ou ainda caçar “vagalumes” e ouvir causos de assombração nas noites escuras... Das noites de lua clara quando todos se agrupavam no terreirão para cantar músicas sertanejas e ouvir o Elias tocar violão... Das épocas de secas em que se fazia novena à Santa Clara para chover, onde a Santa era levada de sítio em sítio e de casa em casa, quando saia sorrateiramente durante o terço com os amigos para passar cocô nas porteiras e depois voltar dissimuladamente como se nada tivesse acontecido (a santa que nos perdoe)... Da vez em que escondeu com a Vilma numa moita de capim para assustar o cavaleiro que vinha em nossa direção, pensando ser o irmão, e quando o homem caiu do cavalo, percebeu o erro que tinha cometido e teve que sair correndo para não apanhar do estranho... Da carreira que o Paulo deu no Saci Pererê lá na roça de algodão... De quando estava construindo o terreirão para a secagem de café e do retângulo de argamassa que demorou mais de vinte e cinco dias para secar (mistério)... Da caçada de nhambu no capoeirão com o Elias em que munidos com uma espingarda não trouxe nada e o Dé, com um bodoque, voltou com o picuá cheio... Dos passeios à cavalo aos domingos pelos sítios da redondeza em busca de frutas... Das obrigações que aos pequenos eram impostas, tais como: levar almoço na roça, colher mamão, abóbora, mandioca e toda sorte de forragem para tratar dos porcos, dar milho para as galinhas, fazer a coleta dos ovos e depois ir para a escola... Das carreiras que levou da vaca “chitinha” a caminho da escola... Da vontade que tinha de ter uma lancheira recheada todos os dias... Das brincadeiras de “bisteca deixa cai no chão não se mexa”... Das vezes que ficava de joelho na frente da sala durante bom tempo da aula, castigo imposto pelo professor, devido a alguma traquinagem que tinha cometido... Dos amores da infância... Das lutas corpo a corpo que sempre acabavam em brigas... Das festas de casamento onde os comes e bebes eram a base de frango e macarrão, regados a vinho e guaraná e embalados ao som de uma sanfona, um violão e um pandeiro... Das vezes em que papai matava um “capado”, aliás, eram sempre dois, um, para o consumo da casa e o outro para repartir com os vizinhos... Das muitas vezes em que papai chegava da roça, pegava o caniço e ia ao ribeirão “buscar mistura”. Ribeirão piscoso que serpenteava no fundo do vale... Dos túneis que escavavam no algodão que estava depositado na tulha... Da vez em que levou uma mordida da égua “bainha” na cabeça, quando estava ajudando amontoar o café no terreirão... De quando caiu de cara no monte de estrume, na tentativa de imobilizar uma vaca para o irmão fazer um curativo... Das idas à cidade com os pais para fazer compra e do dia que deixou definitivamente o sítio e foi pra cidade.
Depois de relembrar cada detalhe, busquei com o olhar o local em que nasci e pude ver que, além da moita de bambu e da amoreira, nada mais existia daquele meu mundo. O rio que serpenteava o fundo do vale virou um grande lago devido ao represamento do principal rio da bacia, a casa não existia mais, no que foi o enorme terreiro onde brincávamos, existia agora um pequeno bosque, na maioria, de arvores exóticas, onde outrora era o capão de mato e a área de cultivo virou pastagem, os sítios vizinhos desapareceram dando lugar a enormes fazendas, e aquele turbilhão de gente que vivia naquela área, hoje se resume a um senhor que cuida do rebanho. Daquela paisagem bucólica da minha infância, restaram apenas lembranças.
— Papai. Vamos pra casa?
— Vamos filho. Vamos sim...