O preço para sentir-me bem
Oitenta e cinco reais. Foi esse o preço que paguei para sentir-me bem. E tudo começou em uma manhã chuvosa de dezembro, em Belo Horizonte.
Fui levar meus filhos para a casa dos primos. Iriam brincar, aproveitar as férias enquanto eu daria uma passada no hospital para olhar um paciente, coisa de trinta minutos e teria o restante do dia livre.
Acabara de ler Thiago de Melo. Estava feliz, inspirado, pensando em poemas que gostaria de fazer.
Cheguei ao hospital relativamente cedo e como se tratava de um hospital escola e o período era de férias, foi fácil arranjar uma vaga para estacionar o carro na rua. Fácil demais.
Pensei que poderia fazer diferente, parar em outro local em que não costumo parar, mudar...
Foi o que fiz. Entrei em um quarteirão fechado na rua Ouro Preto. As vagas contavam-se às dezenas. Escolhi uma e parei. Olhei para fora. Estava chovendo.
Para quem é de fora fica a dica. Quem para embaixo de árvores em Belo Horizonte, sobretudo em dias de chuva, arrisca o patrimônio.
Decidi ouvir meu sexto sentido, mesmo sendo homem. Sempre acreditei que homens também podem ter sexto sentido. Mudei de vaga. Parei perto deuma casa, em uma vaga enorme, plana, longe de riscos e fui para o hospital.
Passados os trinta minutos, talvez menos, saí contente. Tinha o resto do dia.
Mas ao aproximar-me do carro, que por sinal era o da minha esposa, vi dois policiais conversando com um senhor. Instintivamente olhei o carro, parecia estar em ordem.
Cumprimentei os três e abri a porta do carro. O sargento aproximou-se e perguntou se o carro era meu. Disse que sim, tecnicamente era meu, embora estivesse no nome do meu cunhado.
- Então o senhor não é o senhor Walter?- Perguntou o senhor.
- Não, respondi tentando imaginar o problema.
- Teremos que autuá-lo por parar na porta da garagem desse senhor, disse o sargento.
Foi nesse instante que tomei consciência de que realmente havia avançado a frente do carro cerca de vinte centímetros além dos limites.
Pedi desculpas e fui logo entregando a carteira de motorista para a autuação. Burrice a gente deve pagar sem reclamar. Mas o senhor me olhou com aquela cara que mais parecia com as personagens do “Conciliador do programa Fantástico”. Chamou os policiais e disse:
- Ele pelo menos será multado não?
Ele devia estar extremamente preocupado com algo, pois nem notara que os papéis da autuação já estavam sendo preparados. Talvez devesse existir uma pena de prisão perpétua ou mesmo cadeira elétrica para gente distraída como eu, que estava com a mente cheia de poesia
Felizmente não. Apenas multa e reboque, do qual escapei por muito pouco. Ainda tive a felicidade de apertar a mão dos policiais que me trataram com cortesia e firmeza, repassando-me o encargo merecido.
Decidi fazer o relato para alertar aos amigos que não é apenas bebida e direção que não se misturam. A alegria gratuita também pode trazer transtornos.
Não cheguei a sentir-me verdadeiramente mal com a multa, mas, infelizmente, apenas por não ter sido desculpado pelo transtorno que causei àquele senhor. Talvez ele já esteja saturado de gente parando à sua porta. Ou quem sabe ficou ofendido por eu não ter notado a entrada da sua casa.
Seja como for, aqui estou fazendo minha confissão, em meio a muita fumaça e cheiro de queimado.
É que, enquanto escrevia, esqueci um pedaço de queijo na chapa e ele queimou.
Acho que meu sexto sentido é meio falho. Pelo visto os outros cinco também.