Nascido no dia da Besta
Se somos possuídos pelo Diabo, não há de ser por um...
(Franz Kafka)
I – O NASCIMENTO
A história que vou contar, leitor, começou há exatamente cem anos atrás, quando, numa pequena e tacanha cidade do interior, nasceu, no dia seis de junho de 2.006, um menino com nome de anjo.
Quando Gabriel veio à luz, a equipe médica olhou o relógio, como numa coreografia e verificando que os ponteiros marcavam seis horas, seis minutos e seis segundos, entreolharam-se aflitos. Uma das enfermeiras saiu correndo, fazendo o sinal da cruz como se fosse o último de sua vida e os demais, corajosamente, permaneceram na sala, imobilizados pelo medo. Não ousavam continuar os procedimentos médicos naquela coisinha linda que acabara de nascer e o obstetra chefe via diante de si aquele que, talvez, representasse a perdição do mundo e sentia o fogo da culpa incendiar a consciência. Após aquele dia toda a equipe afastou-se para tratamento psiquiátrico, pois haviam ajudado a Besta a nascer.
Bebê saudável, mamãe orgulhosa, já recuperada e papai rindo até para as paredes, foram para casa. Ao entrarem se depararam com um batalhão de velhotas comandadas pelas avós que rezavam uma novena para proteger o mundo do neto.
O sonho colorido com as cores do arco-íris foi brutalmente tingido por tons acinzentados, sem sabor. Ninguém olhava para Gabriel como faziam papai e mamãe e aos poucos todos se afastaram da família que carregava em seu seio a marca da Besta, que tinha como tesouro aquele que destruiria o mundo.
Mas o sofrimento estava apenas começando: seitas satânicas, tribos góticas, exorcistas de plantão e outros loucos afins levantaram acampamento em frente à casa da família. A polícia mantinha, daquele jeito que conhecemos, a segurança do local e as emissoras de televisão voavam em círculos sobre a carniça. Uma delas — nem precisa dizer qual — conseguiu instalar algumas câmeras escondidas pela casa e produziu um macabro reality show desnudando a família da Besta. Era uma família sitiada pela bestialidade das pessoas que desejavam proteger o mundo.
Não podiam sair de casa e nem ousavam abrir sequer uma janela. A mãe ligou a televisão — naquela época ainda se usava controle remoto — e deu um grito de pavor: assistia a si mesma em sua própria casa! O marido veio correndo e, percebendo o quê acontecia, furiosamente arrancou todas as câmeras, que não foram difíceis de localizar. A manchete instantânea era: “A Besta inicia a destruição do mundo a partir da própria família.”
Se você pensa que este é o clímax da história, leitor, devo esclarecer que se engana geometricamente. Para deixá-lo agonizante de curiosidade, adianto que a família sumiu como que por encanto.
II – A FUGA
O cerco já durava quase uma semana e eles precisavam agir, era seu dever salvar o mundo. A polícia não suportou a pressão e queimou o chão; a bestialidade fugia ao controle. Arrombaram a porta com o fogo da justiça divina no olhar, farejaram a casa como cães de caça e nada encontraram além de um buraco no chão da cozinha, largo o suficiente para passar um adulto.
A polícia retornou e isolou o local do crime, mas a perícia nem chegou perto e o detetive designado para o caso pediu veementemente sua substituição, que foi negada por motivos óbvios. No dia seguinte foi afastado para tratamento psiquiátrico porque jurava ter visto no fundo do buraco uma luz avermelhada e ter ouvido um sussurro gelado soprando lá debaixo. Ninguém queria assumir o caso e a polícia abandonou novamente o local que ficou de presente para as seitas satânicas.
Muito espertas, as meninas virgens que moravam nas redondezas tiraram férias e viajaram para a casa daqueles parentes bem distantes — distantes ao pé da letra. As que não fugiram ficaram famosas, mas não pela coragem.
Propagou-se o rumor de que a família fora levada para o Inferno e a casa transformou-se num templo de culto à Besta. O circo dos demônios foi montado no meio do zoológico humano e realizou-se um sacrifício: a cabeça de alguém rolou pelo chão e seu coração foi oferecido à Besta, ainda batendo.
As autoridades decidiram acabar com a festa e o delegado foi pessoalmente ao local . Entrou sozinho — ninguém ousava acompanhar aquele homem que era o supra sumo da coragem — acendeu a lanterna e, iluminando a boca do Inferno, pulou. Como alguém, deliberadamente, poderia pular no Inferno? Que tipo de homem era aquele? Louco ou santo? Cerca de vinte minutos e nada. Todos rezavam e já encomendavam a alma do delegado. Homens robustos, com olhar de mal, choravam a perda do chefe e amigo.
— Bando de bichinhas! — soou atrás deles a voz de trombone do delegado.
Os que puderam, correram para o lado e os outros ficaram acuados entre a boca do Inferno e o fantasma do delegado. Manchas escuras se formaram em suas calças e quase se formou uma, também, nas calças do delegado, mas o motivo era outro. Correu para cima daqueles maricas imitando um fantasma: Buuuuhhhh!, e ria até não poder mais.
Quando conseguiu parar de rir, relatou que aquele buraco era um túnel e acabava na casa ao lado. Sem se conter, caiu na gargalhada, desta vez acompanhado pelos corajosos oficiais de sua corporação — mijados, mas ainda muito corajosos.
Mistério desvendado!
— E a tal luz avermelhada, chefe? — grasnou um dos que estavam com as calças secas.
O delegado tirou uma lanterna do bolso da jaqueta, jogou-a nas mãos do inquiridor e este observou que havia uma película plástica de cor vermelha na lente da lanterna.
— O fogo do Inferno está em suas mãos. — decretou o delegado.
Você, leitor, deve estar perguntando quem fez o buraco e que fim levou a família da Besta. Nenhum mistério perdura para sempre, acalme-se.
O vizinho da família era um rapaz que diziam ser rico, mas ninguém tinha certeza. Só sabiam que andava sempre com o livro “Histórias extraordinárias” de um escritor do século XIX, um tal de Edgar Alan Poe, debaixo do braço; um livro de contos de suspense, fantasmas e coisas sobrenaturais!
Esse vizinho cavou um túnel que, por sorte ou por cálculos muito bem feitos, deu na cozinha da família da Besta. Seu sonho de ser herói, mesmo que por um dia, realizou-se. Foi herói até tornar-se vilão, mas cada coisa ao seu tempo, leitor. Aguarde com paciência e persistência.
A família aceitou a ajuda pois precisavam salvar Gabriel do mundo, não tinham nada a perder então entraram no buraco e sumiram. Muito esperto, o vizinho deixou a lanterna acesa para que imaginassem ser ali a boca do Inferno.
A fuga da família é repleta de detalhes muito interessantes, mas quem já assistiu a um filme de fuga, já assistiu a maioria, por isso não descreverei tal aventura, rogando-lhe, leitor, que use a imaginação, um dos maiores espetáculos da mente.
Basta saber que todos mudaram de nome e foram morar numa cidadezinha muito distante e desconhecida, nas profundezas do interior do país. Sair de um lugar atrasado e ir para outro que necessitava desenvolver-se para ser atrasado não era problema; qualquer sacrifício valeria a pena para salvar o pequeno Gabriel.
Eu sei, leitor, que você é atento, e me pergunta com que dinheiro eles fugiram estabelecendo-se lá no fim do mundo e eu lhe respondo: o vizinho era realmente rico, muito discreto e dono de uma mente extraordinária.
O rapaz havia planejado tudo com antecedência, retirado o dinheiro necessário para a aventura e feito as devidas transferências para contas fantasmas. Ele tinha lá os seus esquemas e acabou sumindo do mapa sem deixar rastros; um verdadeiro gênio do crime e uma pessoa misteriosa.
Porque ele se sacrificou por pessoas que mal conhecia, leitor, não tenho a menor idéia. Há pessoas que nos surpreendem com suas escolhas, não é?
III – A FAMÍLIA DA BESTA
Agora começa de verdade a história. A família será de Gabriel e não mais da Besta, o vizinho será chamado de tio Paulo, o pai de Felipe e a mãe de Taís, todos nomes fictícios. Com novas identidades, comemoraram o primeiro aniversário de Gabriel rodeados de amigos. Aquela criança risonha, com dentinhos nascendo, rosadinha e gorduchinha era a sensação de Meireles — nome fictício da cidade. Felipe e Tais sentiam seu sonho tingir-se novamente com as cores do arco-íris.
Após um ano da chegada do casal, a cidade cresceu o que levaria muito tempo para crescer. Com sua vocação para tornar seus opositores políticos em aliados, Felipe conquistou espaço para organizar uma cooperativa agrícola e pecuária na região, tirando da miséria muitas famílias. Ele era daqueles que conseguia até vender pente para careca. Sabia como convencer os detentores do poder a ajudar quem mais necessitava e sabia, também, dar-lhes o retorno necessário: mais investimento em emprego e desenvolvimento era sinônimo de mais receita e riqueza para alimentar suas pobres almas gananciosas. Sua estratégia era jogar boas idéias no ar que sempre encontravam alguém para adotá-las como sendo de sua autoria. E ficou famoso entre aqueles políticos o jargão: “Roubo mas faço!”, que eles diziam com peito de pombo e sorriso de tarado.
Por ser um líder nato e mostrar preocupação com as pessoas sem esperar nada em troca, Felipe foi levado — ou melhor, coagido — a lançar sua candidatura à prefeitura meirelense e foi eleito no primeiro turno. Pouparei o leitor da narrativa das diversas batalhas políticas contra os coronéis, mas deixo registrado que foi um período de muitas negociações de paz; algumas bem sucedidas e outras não.
O tempo alargava seus passos e Gabriel já completava oito anos. Era uma criança fantástica e crescia de acordo com o plano dos pais: com o bem, o belo e o bom no coração.
Paulo, que assumira a posição de tio, não ficou parado: promoveu o renascimento cultural da região com a valorização do folclore e da música regional. Tornou-se escritor e em oito anos havia lançado cinco livros, sendo dois de poesia, dois de contos e um romance traduzido para diversos idiomas.
“Nascido no dia da Besta” já era um best seller e isso causou desconforto para Felipe e Taís pois falava da história que eles se esforçaram tanto para enterrar havia muito tempo. Nunca mais viveram tranqüilos e uma sombra que insistia em esconder o sol da felicidade os acompanhou e conviveram com o fantasma do medo até o último momento, mas não viveram o suficiente para verem seus temores se tornarem realidade.
Que tesão tem o tempo de passar tão rápido! Eu sei, leitor, que você está com a pulga atrás da orelha e já que plantei a semente da dúvida sinto-me na obrigação de esclarecê-lo, mas não agora. Continue lendo.
Com dezoito anos Gabriel zarpou para a cidade grande a fim de continuar os estudos cursando a faculdade de Medicina. Nem sinal da Besta; parecia que o crime do acaso já havia prescrito.
Na festa do seu aniversário de vinte e um anos ele encontrou o primeiro amor de verdade; uma colega da faculdade que atendia pelo nome de Izabel.
Não quero lançar uma atmosfera de conto das mil e uma noites em torno da família, mas, leitor, os pais empreenderam um ótimo trabalho de desenvolvimento precoce muito bem direcionado na educação do filho fazendo-o conhecer o mundo desde muito cedo. Estavam sempre com um olho no peixe e outro no gato para não deixá-lo se machucar por descuido. Era uma relação de confiança criada desde a época das fraldas.
O menino, que agora já era um homem, nunca deu trabalho e sempre se divertiu sem precisar do que a galera normalmente precisava: álcool, drogas, sexo sem camisinha, agressividade, resumindo, ele sabia o que queria, se protegia e se divertia muito.
Formou-se e na colação de grau toda Meireles estava presente e quando o doutor Gabriel voltou para a terra natal de seu coração a fim de descansar uma semana, foi recebido por uma parada militar. Era o acontecimento do século: o primeiro jovem meirelense a se formar na faculdade nos últimos trinta anos! No ano seguinte mais nove se formaram e foram recebidos com as mesmas honrarias, o que se tornou uma tradição. Alguns não voltavam mais; não queriam pagar mico, mas a maioria não queria perder o título de “Jovem do Ano”. Outros não eram mais jovens já fazia tempo mas, por mostrarem espírito jovem, também eram condecorados.
Casou-se com o Izabel e o casamento foi celebrado em Meireles, já que Felipe e Taís estavam com a saúde debilitada e não podiam viajar. A cidadezinha ficou agitadamente alegre e todos diziam que foi a festa mais gostosa que já viram. Todos voavam sobre as asas das notas musicais da doce alegria que permeava aquela família tão merecedora da felicidade, pois quem mais sofre merece ser feliz mais rápido.
Feliz da vida, tio Paulo lançou um livro de poemas chamado “Príncipe Gabriel”. Ele morreu um dia após a noite de autógrafos, vítima de um ataque do coração, ainda muito jovem: quarenta e oito anos.
Não falarei, leitor, do sofrimento que trás a perda de um parente querido, mas sim de uma das maiores, senão a maior alegria da vida: os filhos. Gabriel e Izabel tiveram uma linda menina chamada Carolina, a menina dos cachinhos d´ouro.
Eu sei, leitor, que a história é muito morna e que você já está com sono, mas é preciso provar que Gabriel não era, nem de longe, a Besta ou coisa parecida. O tempo voa e o melhor ainda está por vir.
Tinha vinte e cinco anos quando os pais faleceram, vítimas de uma doença desconhecida que se desenvolvia ao longo dos anos causando a degeneração dos tecidos, promovendo o definhamento do corpo e o colapso dos órgãos vitais.
Gabriel trabalhou na pesquisa da cura da terrível doença, que ficou conhecida vulgarmente como a “Besta”. Ele era um pesquisador diferente: apaixonado, entusiasmado e não tinha medo de dar tiro no escuro. Foi assim que descobriu a origem da “Besta” numa bactéria que se desenvolvia num tipo de musgo encontrado somente no leito da represa que abastecia Meireles e cidades vizinhas. O que deixou os pesquisadores confusos foi que nem todas as pessoas eram afetadas pela “Besta”. Izabel trabalhou na orientação sobre o uso seguro da água e desenvolveu um projeto de apoio às vítimas da “Besta”, seus familiares e amigos.
Até agora, leitor, dediquei-me em mostrar que Gabriel não tinha nenhuma relação com a Besta, mas agora estenderei o tapete vermelho para a dúvida adentrar aos domínios de sua mente. Permita-se tomar um cafezinho com ela.
IV – A DESCOBERTA
Entremos na máquina do tempo e voltemos ao distante ano de 2.006, época da fuga da família da Besta.
Lembra-se do delegado? Ele tinha um filho, de uns três anos naquele tempo, e seu nome — não o verdadeiro — era Júlio.
Julio tornou-se um adolescente estranho que gostava de histórias policiais e não se contentava apenas com os livros da imortal Agatha Christie. Ele passava o dia inteiro na Delegacia lendo boletins de ocorrência, inquéritos e processos criminais. Com os amigos — se é que tinha algum — agia como se fosse um investigador. Cresceu, tornou-se um homem, casou-se e sua tara por casos policiais ficou mais apurada, mais exigente e abriu um escritório de investigador particular..
Sua mulher sentia-se solitária e cheia de amor para dar, mas Julio só queria saber de B.O., inquéritos e processos. Ela quase ficou doente e seu psicólogo — alguns o achavam irresponsável e incompetente — aconselhou a moça a arrumar um Ricardão; nome vulgar com o qual se denominavam os amantes naquela época. Curiosamente seu amante chamava-se Ricardo e era um jovem investigador, braço direito do delegado.
Julio tinha trinta e três anos quando achou um tesouro no arquivo da Delegacia: o inquérito do caso da “Família da Besta”. Durante toda aquela semana ele leu avidamente aquele fantástico caso e percebeu que a história lhe era familiar, só não atinava de onde a conhecia. Passou mais uma semana mergulhado dentro de si mesmo tentando buscar nos arquivos da sua memória de onde conhecia o caso. Abriu armários e gavetas, virou tudo, achou muita coisa perdida, mas nada sobre aquele caso.
Ricardo não atendia mais aos desejos da amante, o que a deixou muito irritada. Ela jogava coisas em Julio e xingava o coitado de nomes que ele nem imaginava que existissem. Num desses surtos, jogou-lhe o livro “Nascido no dia da Besta” que, de tão grosso, derrubou-o.
Leitor, peço-lhe calma. Ainda tem muita água para passar debaixo dessa ponte que você quer atravessar com tanta pressa.
Julio levantou-se com a testa sangrando, pegou o livro e, chorando, lançou-se sobre a mulher. Ela encomendou a alma a Deus pensando que seria seu fim. Ele cobriu-a de beijos, abraçou-a, rodopiou com a pobrezinha assustada e quase asfixiada, com a cara enfiada em seu tórax gordo. Naquela noite eles até quebraram a cama e acordaram felizes e sorridentes. Era o amor ressuscitando e levantando-se do túmulo. Sorte a dela se aproveitou bem, pois a ilusão do amor ressuscitado evaporou-se e dissipou-se ao sabor do vento do esquecimento. A moça não se abalou; arrumou um Carlão, haja visto que o Ricardão estava noivo da filha do prefeito, e tocou a vida adiante.
Enquanto isso, Julio não deixava aquele maldito inquérito amarelado e fedorento e nem o livro sem capa, com as folhas caindo. Dormia, acordava, ia ao banheiro, comia, enfim, vivia com os dois.
Leitor, se você pensa que Gabriel não tinha nenhuma relação com a Besta, tome mais um cafezinho com a dúvida, para relaxar, e continue lendo.
V – A REVELÇÃO
Certo dia Julio amanheceu na rodoviária de Meireles com o livro “Nascido no dia da Besta” debaixo do braço e o inquérito da “Família da Besta” na mala. Varado de fome que estava, foi direto para uma padaria que ficava no meio do quarteirão; estava tão faminto e excitado que nem se deu conta daquela hilaridade. Pediu um pingado e um pão na chapa e, apresentando-se como repórter, puxou conversa com o senhor que o atendeu; era dono da padaria.
Não me pergunte uma coisa dessas, leitor! Julio era um detetive nato! Em seu genoma estava gravada a programação para isso.
Vendo o livro que Julio carregava, o dono da padaria contou — cheio de pose — que o autor morava na cidade e morreu havia alguns anos, enfim, contou tudo e forneceu até o endereço de Gabriel. Aquele homem de padeiro não tinha nada, mas de fofoqueiro...
Sem perder tempo, Julio dirigiu-se ao endereço fornecido sendo atendido por Izabel. Como Gabriel não estava, ele explicou o motivo de sua visita como repórter e perguntou se poderia esperar. Entusiasmada por natureza e ingênua como uma camponesa, Izabel contou tudo sobre o marido para o distinto repórter, que irradiava brilho de sobrenatural aos seus olhos. Aos poucos ele se convencia de que Gabriel era o personagem do livro e a criança envolvida no inquérito e, satisfeito com as informações, foi embora sem esperar por Gabriel.
Dirigiu-se ao Cartório de Registro Civil da cidade e, usando a lábia que aprendeu com o pai, arrancou do oficial cartorário informações preciosas. Descobriu que aquele oficial, com a cara sulcada pela ação do tempo, na época da chegada da família à cidade, era apenas um escrevente e que aceitara dinheiro do tio Paulo para providenciar a nova documentação da família da Besta. Tudo se encaixou perfeitamente quando ele comentou que achou muito estranha a mudança da data de nascimento do menino de seis para sete de junho; coisa que julgava desnecessária.
Era a prova que faltava para Julio convencer-se de vez que havia encontrado a “Família da Besta” e pensava até em reabrir o caso. Convidou Gabriel para jantar, excitado pela idéia de sentar-se à mesa com a Besta. Parecia até ter engolido uma chama! Cumpriria enfim sua missão.
Leitor, pularei toda essa parte pois quem já viu a cena de uma revelação indesejada e da negação que se segue, finalizando com a aceitação e a raiva, já viu todas ou quase todas. Mas ninguém sai de um acidente desses sem se machucar. Tal qual uma borboleta, a raiva saiu do casulo com suas asas flamejantes de ódio.
VI – QUEM É A BESTA
Gabriel, mesmo transtornado, foi para seu plantão no hospital. Um ônibus caiu numa ribanceira na estrada e os feridos foram encaminhados para lá. Ainda bem que o ônibus estava quase vazio, com apenas treze passageiros.
Leitor, não sei se você é supersticioso ou cético, mas era uma sexta-feira treze!
Júlio era um dos passageiros e foi o primeiro a chegar, estava muito mal, com hemorragia interna e precisava ser operado.
— Você?
— Gabriel... Estou feliz em vê-lo novamente! Você também não está feliz em me ver?
— Odeio você!
— Estou mal, né?
— Está.
— Vou morrer?
— Gostaria que sim, mas vou salvar sua vida. Quanto à sua alma, não é da minha alçada!
— Não se preocupe, amigo. Mesmo que queime no inferno gozarei o doce gosto do dever cumprido.
— Cala boca, sua Besta! — a aplicou a anestesia como se cravasse um punhal nas víceras da Besta.
Julio acordou após o efeito da anestesia e nem imaginava o esforço que Gabriel fez para salvar sua vida. A equipe que o acompanhava já havia perdido as esperanças por causa da extensão da hemorragia, acreditando que seu destino certo seria o caixão, mas Gabriel não desistiu, como nunca desistia de ninguém. Era um médico obstinado e não sabia conviver com a idéia da Morte operar um paciente junto com ele. No caso de Julio, parecia mais obstinado ainda.
— Gabriel, meu amigo, você está péssimo, parece que está virado do avesso. O que aconteceu?
— Salvei sua vida! Libertei você das garras da morte!
— Também salvei a sua! Libertei você dos grilhões da mentira!
— Quero te perguntar uma coisa.
— Pergunte, afinal somos amigos.
— Você acredita que a Besta seja alguém que nasceu no dia 06.06.06 ou alguém que dedica a vida a semear o mal como, por exemplo, revelar um segredo amaldiçoado que ninguém precisava saber?
— Mas que pergunta é essa, meu amigo?
— Ora essa, somos amigos! Podemos conversar sobre qualquer coisa, não é? E então?
— Você precisava saber a verdade! Era minha obrigação esclarecer tudo pra você! Minha obrigação!
— Sei, sua obrigação. Mas você não me respondeu: para você quem é a Besta?
— Mas você precisava saber da verdade!
— Você é que precisava fazer o mal! É disso que se trata, não é? É pra isso que você nasceu?
— Não! Eu libertei você!
Os olhos de Gabriel chispavam fagulhas do fogo da ira e Julio derramava medo pelos seus. A porta se abriu com força.
— Que gritaria é essa? Isso aqui é um hospital! Doutor Gabriel, retire-se imediatamente!
— Eu libertei você da mentira! Agora você é livre! Você é livre!
— Calma senhor Julio! O senhor não pode se exaltar assim! O senhor precisa se recuperar!
— Libertei você! Libertei você, está ouvindo? Você me deve gratidão!
— Fique calmo, senhor Julio, senão serei obrigado a sedá-lo.
— Gratidão é o que você me deve!
— Doutor Gabriel, já mandei você sair! Enfermeira!
— Gratid... ão...
VII – ONDE RESIDE A BESTA
Entraremos novamente na máquina do tempo, leitor, e viajaremos para o dia cinco de junho de 2.106. Carolina, filha de Gabriel e Izabel, aos setenta e seis anos — agora com cachinhos d´algodão — se deparou com um trecho do diário pessoal de seu pai que a assustou. Esse diário deveria ser destruído, mas por obra do acaso, ou do descuido, ainda existe. Por motivos de segurança omitirei a data e revelarei apenas trechos de seu conteúdo:
“Meus pais mentiram para me proteger da insana fúria do mundo, me protegeram com o próprio sacrifício! O mundo decretou que um bebê era a Besta por que nasceu no dia 06.06.06, às 06:06:06h! Logo um bebê! A delicada rosa cuja pétala acolhe o milagre do orvalho.
Dá uma sensação de dever cumprido correr atrás do mais fraco, gritando: ´Queimem o herege! Queimem o herege!´ Por que ninguém enfrenta a Besta de verdade? A verdadeira força do mal, aquele que existe para destruir, aquele que sente orgasmo com o sofrimento alheio?
A Besta vestida de homem revelou-me um segredo que eu não precisava saber! Por que? Simplesmente para cumprir sua missão: estabelecer o Inferno na Terra! Para destruir o mundo, o meu mundo! Para satisfazer seus sombrios desejos de fazer um homem sofrer e o escolhido fui eu!
Se meus pais tivessem me contado a verdade, talvez eu fosse capaz de enfrentar a Besta, mas ela me destruiu lançando a memória da minha família aos porcos!
A morada da Besta é a mentira!
Estou decepcionado com o mundo! É uma decepção que incendeia a intolerância contra a injustiça, a maldade e a mentira. É uma decepção que me leva a enfrentar a Besta, seja ela quem for!”
O triste fim de Julio foi carregar a culpa por destruir a vida de um inocente para satisfazer sua tara egoísta e inconseqüente. Afinal, sempre foi mais fácil cuidar da vida alheia que da própria, porque os fantasmas mais assustadores continuam ocultos e o lobo veste a roupa do cordeiro.
Carolina, minha amada esposa, passou a noite entre lágrimas contando-me a saga da sua família registrada naquele maldito diário.
— Agora eu entendi porque minha mãe dizia: “Que saudade eu tenho daquele Gabriel de olhar azul como o céu de maio. Agora parece um céu de chumbo.”
Leitor, peço desculpas se agi com falta de ética revelando um segredo de família tão bem guardado, mas não posso ser julgado nem condenado; sou um escritor!
Pensando em proteger as pessoas envolvidas e suas memórias, abdico da fama que me trará tal história e ela surgirá no mundo como escrita por autor anônimo.
Em seis de junho de 2.106.
Anônimo