PEÃO URUTU

— Papai, outro dia ouvi o senhor dizer que já foi “peão urutu”. O que é peão urutu?

— Peão urutu é aquele que trabalha na roça sob o comando de um “gato”, geralmente em condições subumanas. Hoje esse tipo de trabalho é considerado trabalho escravo e sujeito as penalidades da lei, mas, em um passado não muito distante isso acontecia com muita frequência e ninguém era punido, principalmente nas áreas de avanço da fronteira agrícola rumo ao Oeste brasileiro.

— Conta pra nós como foi essa experiência.

— Bem... É uma longa história, mas, se você e seus amigos estão dispostos a ouvirem...!

Início de 1979, apesar de já formado no Ensino Médio, continuava trabalhando no campo, como boia-fria, pois não havia oferta de trabalho dentro da minha área de formação, na região.

Numa tarde de sexta-feira, fiquei sabendo de uma caravana que estava se preparando para ir à Mato Grosso do Sul e que partiria na segunda-feira para fazer a colheita de mandioca para uma grande farinheira. Não pensei duas vezes, embarquei no “pau-de-arara” e me mandei, levando na bagagem apenas algumas peças de roupa e um velho cobertor. Viajamos quase dois dias na carroceria de um caminhão sem o menor conforto, até chegarmos ao local do acampamento, que nada mais era que um pequeno casebre a uns quinhentos metros da casa do campeiro que cuidava do gado.

— Tinha cama para dormir?

— Que nada! O jeito foi pegar o facão, ir até a moita de colonião mais próxima e cortar um feixe de capim para forrar o chão. Pronto, estava feito a cama. Descansamos aquela noite e no dia seguinte fomos para o trabalho. Arrumei um companheiro de “eito” e encaramos o serviço.

— Onde vocês almoçavam?

— Ora! No eito.

— E quem fazia a comida?

— A mulher do “gato”, ele a levou como cozinheira.

— Era boa a comida?

— O almoço foi minha primeira decepção. Foi servido para nós uma marmita de aproximadamente 250 gramas (e isso para quem trabalha na roça é nada), tendo no cardápio “tunico e tinoco” e um “corpo seco”...

— Tonico e tinoco, corpo seco! O que é isso?

— Ah! Eu esqueci de dizer. O peão urutu tem um linguajar próprio para se referir à alimentação. O arroz e feijão é chamado de “tunico e tinoco”, a sardinha tem vários apelidos, pode ser “corpo seco”, “pió sem ela”, “pioi de baleia” e “aviso breve”. O peão costuma dizer que quando o “gato” começa a servir só sardinha seca, está dando aviso prévio, mandando o peão ir embora.

Tem ainda: “cabo de reio” (lingüiça). “paletó de maloqueiro” (pele de porco cozida no feijão), “motor de arranque” (mandioca), “boi da terra” (batata), “moura andrade” (charque), “boi ralado” ( carne moída), “coco ralado” (farinha de mandioca) e “relógio de purso” (ovo frito). Esses são os mais comuns, talvez os únicos, por se tratarem de produtos não perecíveis e os únicos disponíveis.

— E depois do serviço, não tinha nada para fazer?

—Nos primeiros dias nada, a não ser contar causos e jogar truco com um baralho já bastante velho e seboso. Confesso que foi nessa época que aprendi alguns truques no carteado e, meu professor foi um tal de “roxo”, peão que fazia parte de nossa equipe. Nunca fiquei sabendo seu verdadeiro nome. Não era importante.

Após uns três dias e depois de conquistar a amizade do campeiro, além do baralho, “roxo” e eu arranjamos uma nova diversão. Toda tarde, quando o campeiro fechava os bezerros na mangueira, brincávamos de tourada e pega do garrote, uma brincadeira bastante arriscada, dada as circunstâncias, principalmente por estarmos num lugar ermo e distante de recursos. Já pensou se um bezerro machuca a gente! Como seria para socorrer o ferido! Bem, graças a Deus isso não aconteceu.

Essa rotina durou vinte e cinco dias, acabado a empreitada fomos fazer as contas. Tinha sobrado apenas dez cruzeiros de lucro e uma lesão na coluna.

— É por isso que o senhor reclama com problema na coluna?

— Com certeza.

— Depois disso vieram embora?

— Que nada! O “gato” já tinha arranjado uma nova empreitada, um pouco mais distante e com menos conforto ainda.

— Como menos! Vocês não tinham conforto nenhum?

— Pra vocês verem! Fomos para outra fazenda onde o acampamento ficava longe da sede uns doze quilômetros em linha reta, não tinha casa para morar nem água para beber, cozinhar ou tomar banho.

— Como fizeram então?

— Bem...! A casa nós fizemos com lonas plásticas, só a cobertura é claro, sem paredes nem portas, sem nada. Para dormir cada um fez uma “tarimba”, que nada mais era que quatro forquilhas fincadas no chão com duas cruzetas e finas varas retiradas do mato e forradas com capim colonião. A tarimba era necessária para prevenir contra “zói pelado”.

— O que é zói pelado?

— É cobra venenosa, peçonhenta. Tinha tanta, que quando ia dormir tinha que levar uma lanterna para a cama, pois caso necessitasse levantar durante a noite, ver bem onde estava pisando, pois caso contrário, era grande as chances de pisar na peçonhenta. Isso era comprovado a cada manhã ao notarmos que debaixo de nossas tarimbas, estava cheio de rastros das danadas.

— E como faziam para cozinhar e tomar banho?

—Trouxeram um tanque velho cheio de água, só Deus sabe a procedência, que servia para beber, cozinhar e tomar banho. Por falar em banho, só podíamos usar uma lata de nove litros. Era necessário economizar. Nosso banheiro era uma moita de capim, usava um caneco para molhar o corpo, ensaboava e depois, com a caneca novamente retirava o excesso de sabão.

— Tinha muitos animais nessa fazenda?

— Se tinha! Pena que o capataz da fazenda proibiu a caça. Não podia entrar nem cachorro nem arma de fogo, e com isso deixamos de enriquecer a nossa dieta. Tinha pacas, cotias, veados, tatus, capivaras... Capivara tinha tanto que ao entardecer a gente podia ver bandos ao redor de uma lagoa que tinha no meio da fazenda, nem medo da gente elas tinham, ficavam bem à vontade.

— E a comida, melhorou?

— Que nada, só fez piorar. O “gato” passou a regular ainda mais a comida, até o dia em que descobrimos que para o sogro e o cunhado que também fazia parte da equipe, ele mandava em toda refeição, um “subterrâneo”. Houve um pé de confusão, todos queriam enquadrar o “gato”, mas enfim, prevaleceu o bom senso e tudo terminou bem.

— “Subterrâneo” é um tipo de alimento?

— Não. É quando se enche a marmita e coloca “mistura” por baixo e por cima do arroz e feijão. Isso é comprar briga como o peão, afinal, está vindo mistura escondida para privilegiar alguém em detrimento dos outros.

— Nessa nova empreitada vocês estavam colhendo mandioca também?

— Não, dessa vez fomos contratados para quebrar milho. O pior serviço que já fiz na vida. Era uma derrubada nova sem descoivarar, com o milho todo coberto por cipós, quase um matagal, era um verdadeiro inferno.

— Pelo menos dessa vez ganhou dinheiro.

— Que nada! Acabei foi por perder os dez cruzeiros ganhos anteriormente. Depois de quarenta e cinco dias nessa vida, meu único patrimônio foi um sapatão, nada mais que isso. Na verdade, quase fiquei devendo para o “gato”.

E depois disso, o que o senhor fez?

Bem, de volta pra casa, já sobre o caminhão, pedi a Deus e, prometi que dali em diante não trabalharia mais de boia-fria. Retomei meus estudos e segui outros rumos.

É por isso que o papai sempre recomenda: estudar é o caminho mais curto para se vencer na vida, ou pelo menos, torná-la menos penosa.

Las Vegas
Enviado por Las Vegas em 20/12/2010
Reeditado em 03/05/2015
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