Licurgo, o Bácoro
É possível que os acontecimentos mais simples e banais sejam muitas vezes os verdadeiros responsáveis por algumas das pequenas tragédias que vemos representar diariamente no palco da vida humana e pelo desabrochar de estranhas alterações na personalidade das pessoas. É possível ainda que as transformações às quais eu esteja me referindo pudessem ter permanecido encobertas por toda a existência de um indivíduo, não fossem aquelas terríveis circunstâncias terem se produzido por uma infeliz obra do destino ou ao sabor do acaso. Em verdade quem dentre nós logrará distinguir com cristalina nitidez acerca das sombras e dos mistérios da vida?!
A partir destes elementos um tanto lúdicos, propus-me a elaborar toda uma teoria que viesse a corroborar essa idéia inicial e – infelizmente, devo acrescentar! - comprová-la através da minha efetiva participação numa situação dessa natureza.
Devo comentar inicialmente que decerto foi algo deste tipo que se sucedeu na vida e na alma do meu prezado amigo Licurgo. Era este Licurgo um sujeito um tanto gordo e calado, meticuloso e arredio, abundante em carnes por um lado e minguado de idéias pelo outro. Vivia metido lá consigo mesmo e com as suas questões pessoais, sem que a vida ou os problemas alheios representassem estímulos suficientemente interessantes para que deles viesse a se ocupar a sua simplória imaginação.
Entretanto, não posso deixar de registrar que nestes últimos tempos vinha já o meu amigo sofrendo uma série de pequenas alterações em seu caráter e no seu modo de agir e é deste fato que retiro algum consolo sobre a minha efetiva participação e responsabilidade neste evento de conseqüências tão drásticas. Em determinadas ocasiões, por exemplo, Licurgo desandava a suar abundantemente por todos os poros do seu corpanzil balofo a ponto de empapar o tecido de sua roupa na região localizada imediatamente abaixo das axilas. Da mesma forma – e como se fosse um apêndice de si mesmo - trazia ele regularmente no bolso da calça um velho lenço remendado que lhe servia na limpeza e aspiração das inúmeras gotículas cristalinas que se formavam continuamente em sua testa larga.
Por si sós estas características seriam já um tanto interessantes para alguém que se sentisse inclinado a se dedicar ao estudo patológico do seu caso. Contudo, não posso deixar igualmente de anotar ser o meu amigo o melhor companheiro de farras com quem já convivi, bebedor inigualável e expert, boêmio inveterado e sempre pronto a esticar um último pedaço de noite que ainda nos restasse.
À bem da verdade - e também para complementar o meu raciocínio anterior - tinha o meu amigo uma qualidade que muito agradava ao meu modo de ser alegre, expansivo e falador: era ele um homem um tanto quieto, silencioso e lento de pensamentos e isto representava para mim nada mais nada menos do que ter em Licurgo a minha própria platéia, a minha audiência particular.
Vou relatar os fatos da maneira exata como se sucederam no tempo e no espaço, esperando obter de vós, neste caso, a atenção e a compreensão dos quais me sinto merecedor.
*
Numa certa ocasião de Abril, saímos eu, Licurgo e mais dois ou três amigos para mais uma jornada etílica em homenagem ao deus Baco. Ao findar da noite, quase já no raiar de um novo dia, decidimo-nos a adentrar num horrendo boteco de curva de esquina, próximo à zona boêmia da nossa cidade. A princípio a conversa reinou animada e alegre. O vinho ruim e o frio da madrugada surtiam em nós o efeito semelhante ao de uma chibatada ressoando nas costelas de um pônei magro.
Lá pelas tantas, entretanto, os nossos companheiros – ó frágeis bebedores! – partiram, deixando apenas eu e meu amigo sentados um diante do outro em sublimes cadeirinhas de metal.
Naquele adiantado das horas não tínhamos já muito do que falar. A conversa se esticava lenta, preguiçosa e bocejante, recheada de “sins” e de “nãos” e os espaços em branco faziam-se maiores a cada momento. A lua alta, brilhando sobre as nossas cabeças, parecia nos convidar ou a nos pormos imediatamente a filosofar ou a partimos em busca do sono reparador e da paz de nossas camas acolhedoras. Contudo nenhum de nós ousava dar o primeiro passo neste sentido, como se cada um houvesse imposto a si mesmo a árdua tarefa de só abandonar aquela mesa quando o outro igualmente se dispusesse a fazê-lo.
Foi então que - num determinado momento da noite, entre um daqueles silêncios que se impunham e se prolongavam pesados entre nós - observei claramente que os olhos do meu amigo não tardariam a se fechar, ainda que ele lutasse bravamente com todas as forças da sua alma para se manter desperto e triunfar sobre mim. Confesso que aquilo mexeu um pouco com as minhas idéias e o meu orgulho pessoal. Aquela beluga gigantesca parecia de fato estar disposta a me desafiar, raciocinei em silêncio.
Foi neste momento – e apenas neste momento, insisto em afirmar – que tive uma idéia brilhante ou, antes, como diria ?... talvez uma idéia assim... uma idéia um tanto grotesca e infeliz, como mais tarde vim de fato a compreender. Com a ponta do dedo indicador guiei a obtusa atenção do meu amigo até o centro da mesa e propus-lhe iniciarmos uma brincadeira, um jogo interessante que nos aliviasse um pouco daquela nuvem de sonolência que insistia em nos rodear e que nos mantivesse suficientemente ocupados naquele resto de noite. Cada um de nós haveria de apresentar ao outro um enigma de difícil decifração. Não que tivéssemos de interpretá-lo logo ali. Não, não! Não naquele lugar e nem assim tão imediatamente! A coisa era de fato mais interessante, afirmei, com o objetivo de despertar a rara curiosidade intelectual do meu bom companheiro.
O decifrador – eu lhe disse - poderia permanecer com a questão por alguns dias ou pelo tempo que lhe fosse necessário, até que conseguisse compreendê-la em seu inteiro teor ou ainda até o momento em que o charadista considerasse que já houvera transcorrido tempo suficiente para o seu esclarecimento. E então - caso o oponente ainda não tivesse atingido o entendimento profundo do enigma – aquele primeiro revelaria ao outro a sua explicação. Para o vosso testemunho e a consignação da minha mais correta intenção, devo assinalar que eu me propus até mesmo a responder a qualquer pergunta que o meu amigo considerasse importante ou necessária para a solução do mistério.
Bem! Como fora eu quem houvera tido aquela idéia original – declarei com toda a convicção e seriedade que me foram possíveis – seria eu igualmente quem iria dar o pontapé inicial naquela jornada, apresentando a Licurgo a minha primeira charada e assumindo ele naquele momento o papel do decifrador.
Licurgo olhou-me diretamente nos olhos – e olhe que seus olhinhos se me afiguraram então ainda menores do que em verdade pareciam ser, encolhidos sobre a pele adiposa e flácida do seu rosto branco – e manifestou a sua concordância movimentando a cabeça lenta e afirmativamente como o fariam os suínos se possuidores fossem de alguma imaginação ou se se pusessem a pensar nas tolices e mazelas da vida humana.
Relatei-lhe, então, a seguinte charada:
“um homem foi encontrado morto no deserto, tendo entre os dedos de uma das mãos um palito de fósforo e trazendo espetado na palma da outra um pequeno broche de metal reluzente no formato de uma estrela”
Ao terminar esta última frase, dirigi o meu olhar mecanicamente em direção ao rosto de Licurgo e pus-me a aguardar as perguntas que calculei pudessem surgir.
Contudo, sob os efeitos daquele vinho ruim e de um final de noite cansativo, mal pode o meu amigo articular três ou quatro vocábulos a mais. Daí a pouco nos despedimos e cada um de nós seguiu o seu caminho na noite fria.
*
No dia seguinte acordei um pouco mais tarde do que de costume, ainda sob os terríveis efeitos da bebedeira da noite anterior. A primeira coisa de que tomei conhecimento fora que Licurgo já me houvera procurado em duas ocasiões nas primeiras horas daquela manhã primaveril e que estivera presente ali uma terceira vez não fazia mais que alguns poucos minutos. Aquilo me deixou um tanto surpreso e intrigado. O meu amigo jamais se dirigira a minha casa em horário tão matinal e nem dessa forma assaz insistente.
Entretanto, no decorrer do dia e sob o peso do trabalho e de outras obrigações de ordem mundana, acabei me esquecendo daquele fato, não lhe tendo dado a devida atenção. Sequer me dispus à noite em procurar o meu fiel companheiro.
No final daquela tarde, Licurgo reapareceu. Apresentou-se-me um tanto agitado, tenso. Um estranho ruído propagava-se dos seus lábios, como se estivesse sugando algo indefinidamente entre a língua e os dentes. Aquele som parecia nascer do fundo da sua garganta ou – se nos permitirmos que a imaginação veleje um pouco mais além – do íntimo da sua alma ou do ponto mais longínquo do seu imenso estômago de avestruz. Trouxe consigo cerca de uma dezena de perguntas. De minha parte devo informar-lhes que respondi a todas elas da forma mais civilizada possível. Todavia – e, no final das contas - somados os algarismos pares e ímpares e jogados os zeros fora, pareceu-me ter o meu amigo partido não muito satisfeito de minha casa. Mas o que haveria de fazer? As regras do jogo eram claras e ele as aceitara plenamente entre um copo e outro de vinho tinto.
Na manhã seguinte, repetiu-se a mesma cena. Licurgo procurou-me assim que os primeiros raios do Sol iluminaram o horizonte. Respondi-lhe a outra batelada de questões e ele partiu uma vez mais não muito contente. Confesso-lhes que os traços do seu rosto se me afiguraram um pouco mais fechados e duros do que na tarde do dia anterior. Além daquele imponderável tique nervoso que eu já lhe observara anteriormente, o meu amigo também apresentava agora um brilho diferente nos olhos.
Nos dias que se seguiram, Licurgo desapareceu completamente. Não logrei encontrá-lo em nenhum dos lugares nos quais acostumáramos a perambular como gatos vadios na noite. Ele não mostrara a cara e nem qualquer outra parte do seu corpo gelatinoso pelos bares que habitualmente freqüentávamos juntos.
*
Passadas duas semanas da inexplicável ausência de Licurgo, dirigi-me a sua residência na certeza de obter ali uma notícia qualquer. Qual não foi a minha surpresa, porém, quando ao por os pés diante da porta de sua casa, fui presenteado com uma cena que me deixou deveras abalado. Pouco faltou para que eu me visse expulso dali a pontapés e safanões pela digna esposa do meu fiel companheiro, uma senhora quarentona, de pele rosada e lustrosa, quase tão robusta e densa quanto o seu estimado marido.
Após muita insistência de minha parte e igual resistência de madame Licurgo em estabelecer comigo qualquer nível de contato, ela acabou consentindo em me comunicar que o seu consorte não estivera passando lá muito bem nos dias anteriores, que adoecera gravemente desde a última vez em que nos avistáramos e que ele, principalmente! – afirmara a mulher, dando-me provas cabais de seu zeloso e digno amor – preferiria vender a alma ao diabo a realizar comigo qualquer novo negócio ou contato. Devo acrescentar que durante toda aquela entrevista madame Licurgo fez questão de demonstrar clara e limpidamente que não se afeiçoara de maneira alguma à minha triste figura e que intimamente me acusava pelo desvirtuamento dos rumos do seu esposo e pela estranha maneira como vinha ele se comportando nos últimos dias.
Achei tudo aquilo muito estranho e encarei a sua indignação como um insulto, uma ofensa pessoal. Entrementes, vislumbrei igualmente a possibilidade de que Licurgo pudesse estar me evitando em decorrência do fato de ainda não ter desvendado a solução para a charada que eu lhe houvera proposto. Conhecendo-o como eu o conhecia, não estaria de todo errado em calcular ser o seu tolo orgulho a verdadeira causa e origem do distanciamento que se estabelecera em nossas relações.
No dia seguinte, portanto, impulsionado pelas mais dignas e pacíficas intenções e objetivando por um ponto final naquela indisposição passageira que viera a macular a nossa cálida amizade, dirigi-me até a repartição pública onde o meu amigo laborava com dedicação e afinco. Após dar-me a conhecer e explicar o motivo da minha presença naquele local, vi-me imediatamente arrastado a uma sala à parte por alguns dos colegas de trabalho do meu prezado amigo. Sem demora puseram-se de todas as formas a tentar me dissuadir da idéia de avistar-me com Licurgo. Noticiaram-me que ele se encontrava atualmente num estado de espírito sui generis, um tanto mais agitado, irritadiço e reservado do que de costume. E disseram-me mais isso e aquilo e mais aquiloutro. Considerando, porém, descabidos e excessivos todos aqueles cuidados e melindres e não tendo dado a devida atenção às suas sábias advertências, dirigi-me assim mesmo ao encontro do meu amigo.
Avistei-o de longe, no ponto mais obscuro e distante da sua sala na repartição, escondido atrás de uma velha máquina de datilografia e de uma pilha de processos amarelados pelo tempo. Sobre a mesa na qual executava cuidadosamente o seu ofício, viam-se duas fileiras retilíneas e diametralmente alinhadas de pequenos objetos de metal, uma composta por grampos platinados e outra por dourados ganchinhos de duvidosa serventia.
Ao notar a minha presença, Licurgo retirou o velho lenço remendado do bolso e pôs-se a enxugar a testa num movimento tenso e repetitivo. Seus cabelos encontravam-se encharcados de suor e uma porção de gotículas cristalinas assomara em sua testa. Percebi em seu rosto aquela mesma expressão desconfiada que às vezes podemos observar em um cão quando sente aproximar-se um qualquer que lhe tenha deitado o chicote ou o pé um minuto antes. Nos momentos que se seguiram vi o cenho de meu amigo se fechar mais e mais como o céu carregado dos dias de chuva e então eu pude intuir de fato acerca da possibilidade real e iminente de se aglomerarem relâmpagos e trovões sobre a minha ilustríssima pessoa.
Tentei inicialmente conversar com o companheiro, trocar algumas idéias sobre assuntos banais, inteirar-me do porquê de seu afastamento tão repentino e inexplicável e, finalmente, confidenciar-lhe estarem os nossos companheiros de boêmia um tanto preocupados e aflitos diante da sua longa ausência. Durante toda a nossa conversa, Licurgo permaneceu distante e não se mostrou disposto de forma alguma a presentear-me fosse com os ouvidos ou com a sua atenção. Quando ousei perguntar-lhe sobre a resolução do enigma ele pôs-se branco como esta folha de papel sobre a qual agora me encontro debruçado narrando-lhes estes acontecimentos. E ao assegurar-lhe que não se aborrecesse, que tudo aquilo não passara de um jogo intelectual sem importância alguma e que eu me dispunha até mesmo a revelar-lhe imediatamente a solução daquela charada, num movimento brusco ele saltou em minha direção. Não fosse a sua lentidão suína aliada à destreza e à agilidade próprias da juventude, teria recebido um golpe fatal e certeiro de suas pesadas mãos e ter-me-ia visto ao solo antes mesmo que tivesse ouvido soar o gongo final do primeiro assalto. Pulei para o lado e num segundo me vi fora daquela sala e longe dos quase sentidos golpes de Licurgo.
Compreendi naquele momento que pouco adiantaria abrir a alma ao meu velho e pacífico amigo. Aquilo tudo acabara se tornando para ele uma verdadeira obsessão e nada do que eu viesse a dizer ou fazer alteraria substancialmente a sua inamovível decisão de deslindar solitariamente o caso.
Antes de me despedir de vós colocando um ponto final nesta narrativa, convém que eu abra um último parêntese para comentar que nunca mais tornei a avistar o meu fiel companheiro. Já se passaram dois anos desde que nos encontramos pela última vez. Recentemente correu entre nós o boato de que Licurgo teria sido visto numa das ruas da Capital sendo conduzido por sua amantíssima esposa até uma antiga Casa de Repouso. Sobre a veracidade deste fato, porém, eu nada pude apurar.
Entretanto - por outras fontes mais seguras - vim a tomar conhecimento de que o meu amigo continua ainda hoje a se debater inutilmente com a solução do enigma. E, devo confessar-lhes: se eu digo “inutilmente” é porque me vejo... bem... porque me sinto na obrigação moral de vos revelar que toda aquela história de charadas não passara da mais pura fanfarronice de minha parte. Eu houvera inventado aquilo apenas por me encontrar demasiadamente extenuado naquela hora tardia da noite e por ter compreendido naquele olhar que Licurgo me lançara algo mais do que um simples desafio.
É possível que naquela ocasião eu não tenha agido da forma mais correta e aceitável. Contudo, conto com a vossa compreensão e discrição neste sentido. Que esta minha última e inútil confidência permaneça unicamente entre nós - entre mim e vocês - e que Licurgo jamais venha a tomar ciência das minhas palavras. Todavia, cá entre nós - e que aqui ninguém nos ouça - vai lá alguém saber o que se passa no peito de um homem...!
Finalmente - ao me despedir definitivamente de vós – faço-o já com o coração assaz aliviado. E num último e solene gesto de adeus eu vos proponho que penseis seriamente e uma vez mais naquelas minhas questões iniciais: afinal, credes ou não ser possível de fato que alguns acontecimentos simples e banais sejam muitas vezes os verdadeiros responsáveis por muitas das pequenas tragédias que vemos representar diariamente no cenário da vida humana e pelo desabrochar de estranhas alterações na alma das pessoas? E quem dentre nós em verdade ousará saber diferenciar com absoluta e cristalina nitidez acerca das sombras e dos mistérios dessa vida?!