Fatídico dia
Fatídico Dia
A sirene tocou estridente por um longo minuto. Em frente à Escola Ranulfo Carrera as crianças faziam uma algazarra infernal, mas por pouco tempo. A professora, à porta da sala já as esperava, enfileiradas e em silêncio, para ocuparem ordeiramente os seus lugares.
A pró Marinalva era uma senhora de meia idade, sarará, estatura mediana, rosto afilado e pequeno, cabelos encaracolados, nariz aquilino, voz de taquara rachada e esganiçada e temperamento indócil. Não se poderia chamá-la de um autêntico exemplar da bela fêmea brasileira, mas casou-se com um sujeito até afeiçoado, com quem teve filhos e filhas.
Quando provocada era como “cutucar o cão com vara curta”. Exasperava-se e no auge de seus faniquitos gostava de esbravejar a célebre frase - “Comigo vocês batem binga, mas não tiram pó”. Talvez pelo dúbio sentido da frase, eu a tenha retido cimentada na memória por todo esse tempo.
As crianças entraram e após a chamada, em pé e contritas, rezaram o Pai-Nosso - primeira obrigação diária da classe. Começada a aula, Marinalva notou um zumzumzum danado entre alguns alunos, deixando-a bastante intrigada.
- Prestem atenção à aula meninos! – bradou a professora. Vocês estão inquietos por quê?
- Professora é porque Aquiles está cheirando a mijo e a gente não está suportando ficar perto dele – respondeu o coleguinha Orlando, um gorduchinho atarracado e com pinta de menino levado.
Marinalva fez uma pausa na aula por ela ministrada e pediu ao aluno denunciado que se dirigisse até ela.
– Chegue até aqui perto de mim Aquiles! – ordenou-lhe a docente.
Trêmulo e amedrontado, Aquiles foi ao seu encontro. Marinalva pediu para o menino se aproximar ainda mais dela e, fazendo-o girar de frente e de costas num procedimento habitual utilizado pela mestra neste tipo de situação, o cheirou com faro de cão de caça.
Coitado do pobre Aquiles! Eu não queria estar em seu lugar naquele momento infeliz. Numa inusitada iniciativa, a professora pôs todos os alunos da classe na rua, em frente à escola, enfileirados e perfilados como se fossem participar de um desfile em comemoração a uma Data Magna.
Os transeuntes ficaram sem entender o porquê daquela formação em data não festiva e, levados pela curiosidade, se aglomeraram em frente ao estabelecimento escolar ávidos em descobrir o que se passava na cabeça da carrasca mestra.
Alguns até arriscaram algum palpite acerca do acontecimento, mas nenhum chegou perto a ponto de desvendar a verdadeira intenção de Marinalva. Nem mesmo o pai de seus filhos e companheiro de alcova, então debruçado sobre o peitoril da janela de casa e assistindo a tudo sem atinar para a razão daquela movimentação.
Enquanto isso, lá de dentro daquela “respeitável” instituição de ensino, saía Marinalva com passos apressados, pincenê caído sobre o aquilino nariz, sobraçando uma folha de cartolina branca com as extremidades presas por um grosso barbante. Dirigindo-se ao pobre Aquiles, envolveu o cartaz no seu pescoço pendurando-o à altura do peito. Em seguida posicionou o garoto à frente da turma.
Todos que ali se encontravam - inclusive alguns pais de alunos acostumados a transferir para as professoras amplos e irrestritos poderes, inclusive os de, quando necessário, castigar seus filhos, foram tomados de perplexidade pela inscrição na cartolina, em letras garrafais vermelhas, onde se lia: “EU SOU MIJÃO”.
Incrível o poder de convencimento da professora! Isto porque, frente àquela constrangedora situação o público presente, a tudo assistia tacitamente referendando.
- Atenção classe! Ordinário marche!
Uma esganiçada voz de comando ordenou a turma a seguir em frente, desfilando pelas poucas ruas do vilarejo de Córrego da Onça. À passagem do cortejo ouviam-se alguns gracejos do tipo: “Olha o mijão”! “Que caatinga de mijo”! E mais coisas do gênero endereçadas pelas crianças e adolescentes que não faziam parte da classe, mas formavam uma ruidosa aglomeração quando o cortejo passava por elas.
O resignado Aquiles, abatido e cabisbaixo, seguia sua “Via Crucis” a passos lentos e pesados. Devia-lhe faltar terra aos pés.
O cortejo continuou e alguns comentários reprovando aquele insano ato eram ouvidos. Todavia não passavam de pífios comentários. As crianças continuavam a arreliar o pobre garoto que, sem levantar os olhos para encará-las, sentia intimamente a voraz vontade de esganá-las. Porém, ele sabia: naquele momento, qualquer ato hostil só complicaria ainda mais sua situação.
Córrego da Onça, à época só possuía três ruas em forma de “T” e, a esta altura dos acontecimentos, o cortejo já havia desfilado em duas. Por sorte do desventurado garoto, um fato novo veio libertá-lo daquele martírio.
O senhor Dodô, administrador da vila e recém-chegado de uma viagem a Itabuna, foi ao encontro de Marinalva e lhe transmitiu sem alarde - para não chocar as crianças -, a funesta notícia de que o mandatário da nação havia cometido suicídio, ordenando a suspensão das aulas porque o país inteiro havia entrado de luto em memória ao falecido presidente.
Marinalva imediatamente recolheu a turma à sala de aula e ordenou que todos sentassem, em silêncio, pois ela tinha uma triste notícia para dar.
– Meninos, a partir deste momento, as aulas estarão suspensas em virtude do falecimento do nosso presidente. Vão para casa e só retornem para a aula amanhã.
- “Viva o nosso presidente”! – exclamou o sapeca Orlando sem conter a alegria pela folga a ser desfrutada.
Conhecendo Marinalva como conheci, sabia que aquele arroubo juvenil não iria sair de graça. Dito e feito. Toda turma foi liberada menos o gorducho sapeca, mantido preso na sala até o horário final da aula.
Na flor de seus oito anos, o sapeca Orlando não tinha a real compreensão da morte. Tampouco o pequeno Aquiles, por esta “beneficiado”. E assim aquele fatídico 24 de agosto permanece vivo em minha memória, à qual, de vez em quando recorro, indagando sobre o paradeiro do pobre garoto mijão. Será que depois de ter passado por tamanho constrangimento se tornou um adulto normal? Gostaria de algum dia reencontrá-lo.