O Choro da Santa
O Choro da Santa
- A santa tá chorando saaannnnngue!
- A santa tá chorando saaannnnngue!
- Venham ver a santa chorando saaannnngue!
Os gritos da espavorida zeladora Carolina ecoaram no meio da ladeira que leva até a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, se amplificando por todas as demais ruas da Vila. Aos poucos foi se formando uma verdadeira procissão de beatos e curiosos jamais vista naquele lugarejo. Marchavam em direção à capela da padroeira. Nem mesmo no dia em homenagem à Santa, o padre conseguia arrebanhar tanta gente naquela casa de Deus.
- Isso deve ser um recado dos céus - esbravejou a beata Carmelita. Quem manda o Homem querer saber mais do que o Senhor Todo Poderoso! - indignou-se.
- Culpa desses comunistas que ficam mandando cadela para o espaço – disse bastante indignada outra senhora, numa clara referência à cadela Laika enviada ao espaço pelos soviéticos. Só pode ser mesmo um aviso do Pai Eterno a esses hereges.
A multidão aumentava, paulatinamente, e as lamentações das pessoas presentes também. A acanhada igreja, apinhada de gente, transbordou fiéis por toda a rua. As pessoas idosas na iminência de prestar contas ao Pai, genuflexas e contritas, oravam pedindo pela salvação de suas almas.
Os espertos cabos eleitorais tentavam tirar proveito da situação, insinuando conclamar toda a circunvizinhança do distrito a marchar em romaria até a capela.
Lembrei-me então de fenômeno (?) semelhante ocorrido meses atrás, na casa de dona Lia de João. Ela, fervorosa seguidora do pregador radiofônico do programa Legião da Boa Vontade, ouvia diariamente aos ensinamentos cristãos. Em razão disso, mantinha em cima do rádio uma garrafa cheia de água para ser abençoada, de acordo com instruções do religioso.
Nesse dia, na hora do Ângelus, ela estava sozinha na sala de estar de casa, ajoelhada, cabisbaixa, olhos fechados, ouvindo contrita o pregador Alziro Zaru. Quando levantou a cabeça, abriu os olhos e fitou a parede, deparando-se com uma figura. Segundo ela, a imagem de Nossa Senhora.
O reflexo produzido pela incidência dos raios luminosos, refratados através da garrafa d’água formava na parede uma imagem difusa. Na mente daquela senhora era a imagem da Virgem Maria. Encasquetou ser a Mãe de Jesus e ninguém a demovia daquela estapafúrdia idéia. Saiu na janela e começou a chamar os passantes para presenciarem o fenômeno (?). Em pouco tempo, a frente de sua casa estava abarrotada de pessoas ávidas em constatar a aparição da santa. Muito eufórica a beata perguntava:
- Vocês estão vendo o que eu vejo?! Ela está com uma coroa na cabeça (referia-se à auréola que envolve a cabeça de Nossa Senhora) e com o olhar firme como se quisesse nos falar alguma coisa! - afirmava categoricamente.
– Olha aqui suas vestes exuberantes! – Insistia a beata.
Com o indicador em riste apontava para o que dizia ser o manto da Virgem. E a maioria das pessoas presentes compactuava com suas alucinações.
Não fosse a sábia explicação do cético Lourival, até hoje tínhamos romaria em direção àquela casa. Com ares de cientista laico e com a devida permissão da beata, ele pegou a garrafa com água de cima do rádio e foi girando. Várias imagens diferentes foram se formando na parede, ante os olhares incrédulos das pessoas. Para dar cabo de uma vez por todas daquela insanidade, ele chamou a atenção das pessoas, ali presentes, dizendo que aquilo tudo não passava de ilusão de ótica. E todos estavam sugestionados pela fé inabalável, admitindo haver a imagem da santa como dona Lia pensava que fosse.
- Semelhante situação ocorre – explicou –, quando o apostador de jogo do bicho joga água na parede para ver qual imagem de animal aparece a fim fazer a sua aposta. Dito isso, pegou uma vasilha com água, derramou um pouco na mão, fechada em forma de concha, e jogou na parede. Repetiu esse rito várias vezes. Vejam senhores, aqui temos uma avestruz! – disse.
- Aqui um cavalo!
- E nesta aqui uma cobra!
Lourival relacionou a semelhança de várias imagens, formadas na parede, com animais do jogo de azar, do qual ele era um contumaz apostador.
- Viu aí pessoal, agora não restam mais dúvidas – arrematou. O segredo está desvendado!...
O silêncio de todos encheu de credibilidade as explicações do cético.
E assim, naquele dia, uma romaria teve fim precoce.
Não foi diferente desta vez. A multidão que atendeu aos apelos da zeladora era imensa. Não se sabe de onde surgiu tanta gente. Até que o estraga prazer do cético Lourival apareceu para jogar areia no brinquedo.
Chegou mais uma vez com a empáfia de quem já domina o assunto. Foi pedindo licença às pessoas e adentrando a igreja. Aproximou-se do altar, onde reinava majestosa Nossa Senhora do Carmo e viu realmente escorrer de seus olhos um líquido avermelhado.
O cético não titubeou. Saiu da capela por alguns minutos e voltou com uma escada. Colocou-a ao lado do altar e alçou degrau por degrau até a altura da cobertura de tecido de lumiere vermelho que cobria a imagem. Aí constatou facilmente: havia uma goteira no telhado e , quando chovia, caíam pingos d’água no tecido. Deste, descia um líquido avermelhado pela cabeça da santa e escorria pelos olhos, despencando em forma de lágrimas.
Vale acrescentar que, mais uma vez, por culpa do mequetrefe Lourival, outro pretenso milagre foi desfeito. Bem como mais uma romaria morreu no nascedouro.