O Braço das Piranhas


Carrinho novo, feriadão e não deu outra. Juntamos a turma para ir pescar no Araguaia. Sejamos justos, não era bem um carro novo. Era um Gol BX de seis anos de idade. Dei-lhe o nome de Pascoal, por tê-lo comprado na Páscoa, mais exatamente no sábado de aleluia. Devia tê-lo chamado de Judas e já aproveitava a cerimônia da malhação para tacar-lhe fogo naquele dia mesmo.
A cada temporada de repouso na oficina, aparecia uma novidade. No final já sabia que três outros carros jaziam ali no meu Frankenstein automotivo. Era para eu ter desconfiado da qualidade da minha aquisição quando o amigo que me assessorou na escolha veio lembrar-me de completar a água do radiador. Considerando que o Gol BX é refrigerado a ar, essa foi a maior prova de que ele não entendia nada de carro. Mas não desconfiei e toquei viagem para Chapéu de Palha, com mais três amigos e um monte de tralhas no carrinho.
Não deu outra. O motor, a álcool, fundiu. Não, por falta de água no radiador, claro! Aproveitei para trocar por um a gasolina, pensando que isso resolveria meus problemas. Não resolveu... E ainda nos fez perder o primeiro dia e a primeira noite do passeio, esperando pelo motor novo, numa oficina de beira de estrada.
Enfim, chegamos ao nosso destino. Eu pensava que Chapéu de Palha fosse um hotel-fazenda em alguma praia às margens do majestoso Araguaia, ou, ao menos, um camping arrumadinho. Na verdade, era um lote cheio de mato, com uma tapera onde moravam os caseiros, sem qualquer estrutura. Ficava localizado à beira de um braço do rio, num trecho meio represado, onde proliferavam as piranhas. Impossível mergulhar ali. Qualquer coisa lançada às águas provocava ebulição de dentes afiados e bocas famintas.
Não havia banheiros. Tomar banho era uma operação complicada. Consistia em descer até a beira d’água, equilibrar-se sobre uma tábua imitação de cais, deixando sabonete, toalha e roupas precariamente acomodadas sobre uma cadeirinha na margem. Uma cacimba ficava ali a postos para pegar a água e jogá-la sobre o corpo. Com cuidado, para não pegar uma piranha junto, por distração.
Numa noite, eu já estava meio ensaboada, ouvi um barulho no mato próximo. Pensei que era brincadeira de algum dos amigos, e peguei a lanterna, apontando-a na direção do ruído. Dois grandes olhos injetados refletiram a luz amarelada. Era um enorme jacaré e estava a não mais do que quatro metros de mim. Agarrei as roupas, derrubei o sabonete para as piranhas e saí correndo em direção às barracas, enrolando-me na toalha pelo caminho.
No dia seguinte, soube pelos zeladores do parque que o bichão vouyer era velho e desdentado e que eles o alimentavam com restos de comida. Perguntei:
– Como vocês sabiam que era ele?
Esperava alguma resposta bem incisiva de que só ele ficava naquela área, pois ainda precisaria tomar mais uns dois banhos antes de voltar para casa, mas o que ouvi foi:
– Ah! Devia ser. Os outros só aparecem de vez em quando.
Os outros, dezenas deles, tomavam sol numa prainha na outra margem. Banho, a partir dali, só perto do acampamento, com água carregada em baldes.
Apesar desses percalços, a estada ia bem. Acampamos numa clareira ao lado de um barranco, ótima posição para a pesca. Nos divertimos muito, bebemos bastante, tocamos violão e cantamos à noite, além, claro, de tentar pescar. “Tentar” mesmo, porque a pesca estava bem fraca. Não pegamos quase nada, tirando, óbvio, piranhas.
Na terceira noite, ao pegar uma delas pela quinta vez, meu amigo, já irritado, soltou-a do anzol e jogou-a de volta na água. Acontece que, ao lançá-la, ele não percebeu que o anzol cravou-se novamente em sua nadadeira.
Assim que o peixe bateu na água, ele já se preparava para puxá-lo novamente, quando vimos o assanhamento dos jacarés na prainha. Resolvemos esperar, para ver o que os bichos fariam. Um deles nadou rápido até a piranha, deu uma corcoveada e mergulhou abocanhando-a. Uma mancha de sangue restou na superfície. Imaginamos que a piranha tenha lhe mordido a língua ou algo assim. Foi o que bastou para que o rio borbulhasse em dentes afiados. De todo lado, surgiam mais e mais piranhas, na direção dele, que já tentava desvencilhar-se da linha, enrolando-se cada vez mais.
Corremos para ajudar meu amigo que só repetia o quanto o equipamento tinha sido caro. A linha balançando muito com a força do bichão, ninguém conseguia cortá-la, o jeito foi puxar. E foi o que fizemos, todos juntos. Vendo que não ia ter jeito, enrolamos a linha numa lata que havia por ali e o pessoal ficou segurando, enquanto eu corri com a vara até o carro, enrolando a linha no puxador do reboque. Liguei o carro e arranquei, puxando com toda a força. De repente, ouvi um estrondo e olhei, pelo retrovisor o pára-choque indo embora, na direção da água.
– Claro! – pensei – se tudo nesse carro é engatilhado, porque diabos o reboque não estaria fixo no parachoque?
Por sorte, ele encaixou no tronco de duas árvores, ficando preso ali. Peguei uma corda, prendi no parachoque e no gancho dianteiro do carro, reiniciando a marcha. Só aí, conseguimos içar o mostrengão. E ele vinha coberto de piranhas, agarradas por todo o corpo. À primeira camada de piranhas havia outra grudada e a esta mais outra.
E era tanta piranha, mas tanta piranha, que, quando conseguimos tirar o jacaré da água, o nível do rio baixou mais de metro.


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Texto premiado com o 3º lugar no 2º CONCAUSO
Concurso Nacional dos Causos de Pescador.