COISAS DO INTERIOR
Sapatos trocados II
Certa vez fui a um casamento da filha de um vizinho, numa cidadezinha próxima de onde morávamos. Naquela época, a moda no interior era andar de bicicleta, os cavalos estavam perdendo a real majestade. Então, eu e alguns amigos pegamos nossas bicicletas e fomos pela estradinha estreita, de terra batida, quando alcançamos o irmão da noiva, caboclo rude, alentado, afeito às lidas da fazenda. Gostava de se apresentar bem e tinha fama de valentão, daí o apelido de “Bastião ranca-toco”. Estava montado num lindo puro-sangue, preto reluzente e bem cuidado, seu maior orgulho. Entre uma prosa e outra, seguimos juntos até a cidade e, quando ele apeou e foi a amarrar o possante, notei que estava mancando.
De imediato, vi que ele calçava um belo sapato “cromo alemão”, novinho em folha, preto, de bico fino, reluzente que nem o puro-sangue. Reparando bem, vi que os sapatos estavam trocados. Receoso de falar com ele sobre os sapatos e ser mal entendido, em vista da sua reconhecida ignorância, perguntei amistosamente:
- E aí bastião, tudo bom? Que belos sapatos?
Ele então me puxou pelo braço, afastando-nos dos demais, e segredou-me:
- Bão nada, esse sapato tá me matano! Oi cê vê, vô tê de entrá na igreja ca noiva! Num vô guentá esse trem não sô. O que qui eu faço?
Aí, num repente de sorte, me ocorreram as palavras certas e delicadamente falei pra ele:
- Uai, quando acontece isso comigo, eu troco os sapatos de pé e sempre resolve o problema, por que não tenta o mesmo?
Ele me olhou meio desconfiado.
- Trocá os pé?
Em seguida sentou-se na escada da igreja e trocou os sapatos. Bateu os pés com força no chão e todo sorridente e agradecido exclamou:
- Uai sô, num é qui miorou mess! Oia, eu num sabia que ocê era tão inteligente ansim não sô!