O estranho caso da menina Paula
Era muito novinho a primeira vez que alguém comentou o fato. Acabara de completar cinco anos quando uma tia comentou com a mãe:
— Marina, você já viu os modos do Paulo, olha o jeitinho com que ele brinca com as meninas.
— Ah, já tem muito tempo que eu percebo isso. É assim em tudo, sempre foi. Sempre adorou brincar de boneca, sempre preferiu as brincadeiras de meninas, passa o tempo todo com elas.
— Mas não é só a brincadeira, olha os gestos, os movimentos do corpo. E até dos olhos. O jeito de falar eu tinha reparado havia tempo, mas achava que tinha aprendido com alguém.
— É sim, há muito tempo que eu não tenho mais dúvida, mas estava esperando mais alguém notar.
— Todo mundo nota, mas nem mesmo os mais moderninhos podem falar sobre isso, pode ofender.
— É, eu sei. O Marcos se diz moderninho, mas com o filho dele eu quero ver. Vou falar com ele logo.
O que preocupava a mãe não era o fato propriamente, mas a possibilidade, para ela odiosa, de que viessem a compelir seu filho a se tornar o que não era, a ter que agir de uma maneira falsa e mentirosa, simplesmente para satisfazer conveniências sociais.
A família era toda moderninha, e ninguém se incomodou com aquilo que já percebiam; a mãe pareceu até feliz com o fato, talvez por gostar de afetar uma modernidade transgressora. O pai não se entusiasmou minimamente com a constatação, mas nem ele chegou a mostrar desagrado; era uma família moderna e tolerante, não podiam permitir que lhes impusessem seus hábitos, tinham que garantir a todos sua própria opção.
Com o passar do tempo as coisas foram ficando cada vez mais claras e quando mudaram de bairro, aproveitaram para tornar a mudança radical e definitiva: passaram a vestir Paulo de menina, complementando a transformação com um plano definitivo.
Com auxílio de um certo estímulo financeiro, convenceram o escrevente do cartório de que havia ocorrido um erro no registro da menina. O pai, embriagado ao fazer o registro, não teria percebido a troca do nome e do gênero na certidão, o que só teria sido notado agora, em vésperas de entrar para a escola. Vivamente estimulado, o homem aquiesceu em fazer ele mesmo a correção, diretamente nos dados de entrada do cartório, sem a necessidade de passar por um longo e constrangedor processo judiciário para o reconhecimento do óbvio.
Desse modo, tudo ficou legal. Era oficial: a menina chamava-se Paula.
Paula entrou para a escola e cresceu normalmente, como qualquer outra menina. Com o passar do tempo, tornou-se uma linda jovem, grande e vistosa. Era muito vaidosa e adorava se maquiar. Vivia cercada por um grupo de amigas, entre as quais sempre se destacava por seu porte suntuoso.
Também era muito tímida, e costumava evitar certas intimidades com as outras meninas, não gostava que lhe vissem o corpo. Tinha forte preocupação com o excesso de pelos, também se queixava da falta de seios, que compensava com uns enchimentos aplicados com destreza e elegância. Assim como algumas de suas amigas mais pudicas, ainda não tinha arranjado nenhum namorado até a sua festa de debutante.
Nessa noite, estava deslumbrante, lindíssima, embora excessivamente maquiada, talvez, mas gritantemente bela, do alto de seu metro e oitenta e cinco de magreza esbelta e flexível, com um rosto de feições marcantes ainda mais acentuadas pela pintura.
Não podia deixar de ser a sensação da festa, sua presença chamava a atenção pela beleza e imponência, de modo que os rapazes foram enfeitiçados em bloco; não conseguiam ter olhos para nenhuma outra moça, assediando Paula com uma insistência que a intimidava e constrangia a moça pudica.
Conseguiu se esquivar de todos os rapazes até o final da festa, até que algo surpreendente ocorreu. Foi Ana Mendonça quem, já no finzinho da festa, encostou Paula na parede e lhe tascou um beijo ardente, pressionando o seu corpo no dela intimamente, acariciando-a com uma sensualidade intensa.
Já havia um bom tempo que Paula pressentia aquilo, mas desde aquele instante não podia mais negar. Tinha sempre evitado falar com a mãe, o que todas as suas amigas já haviam percebido: Paula era lésbica.