MEU CACHORRO PERI (parte 3)

MEU CRIME CONTRA A NATUREZA

Teve uma vez que quando estávamos buscando as vacas para tirar o leite, o Peri achou um buraco de tatu que tudo indicava, ter um dentro. Levamos as vacas para o curral e voltamos correndo para tentar caçá-lo. Até hoje, quando olho para o céu, peço perdão a Deus pela tamanha covardia.

Naquela época ainda se usava a teoria de que um filho para ser bom, tinha que saber montar, tirar leite, não ter medo de vaca parida de novo, ser bom laçador e também ser bom caçador. Meu pai ficava me instigando quando o Nêgo Estêvão chegava à tarde com um belo tatu nas costas: - Está vendo, meu filho, o tatu deu 6 quilos de carne, dá para ele comer uma semana! Eu ficava me remoendo, pensando que também poderia conseguir.

Chegou a grande chance. Quase não consegui montar em pêlo no meu Fusca de tanta ansiedade de poder caçar meu primeiro tatu. O Fusca foi meu segundo presente de aniversário, quando tinha sete anos. Era um cavalo tão bom e macio que meu pai falou para colocar nele o nome de Fusca porque era o carro mais moderno e macio da época. Peguei um enxadão e voltamos para o pasto morrendo de medo do tatu ter mudado de buraco. Lembro, como se fosse hoje, que foi a única vez que meu Fusca conseguiu galopar na velocidade do Peri. Parecia que ele tinha assimilado minha ansiedade e também queria participar daquela caçada. Chegamos ao lugar, morada velha de tatu. Dizia o Zezico, filho do Nêgo, que buraco velho de tatu é cheio de labirintos. O Peri cavucava a terra, latia, insinuando que ali tinha um tatu. Comecei a cavucar também. Talvez tenha sido a primeira vez na vida que descobri que infelizmente, contra a natureza, o homem pode tudo. Eu, um pirralho de sete anos, com um enxadão que pesava mais que eu, fui cavucando, cavucando. O Peri latindo, eu cavucando. Teve uma hora que o buraco tinha uma encruzilhada, duas ramificações. Chamei o Peri e ele me ensinou o caminho certo. Mais enxadão, mais perseguição. De repente, um rabo. Até hoje eu choro pelo meu crime. Peguei naquele rabo de tatu como se fosse a minha glória de filho bem sucedido. Puxei para fora do buraco com instinto de caçador. O tatu escondia a cabeça debaixo do casco pensando que estava se defendendo de um lobo. Mas ali estava uma miniatura de ser humano, com enxadão na mão e um cachorro que, para caçar, era muito mais esperto que um lobo. Uma enxadãozada nas costas, pescoço para fora e o Peri, laus. Só uma mordida e lá se foi a história de um tatu. Peguei-o triunfante, sem saber como levar o tatu e o enxadão num cavalo em pêlo.

De repente, outro latido. Quando olho, o Peri cavucando de novo; mais enxadão, mais um rabo, outra tirada, outra mordida. Pensei todo garantido que nunca tinha visto meu pai nem o Nêgo chegar lá em casa com dois tatus de uma só vez. Agora era glória total e tinha até como levá-los. Peguei um cipó São João, amarrei os dois pelos pés e coloquei no lombo do fusca como se fossem latas de leite. Depois de tudo arrumado, outro latido.

Quando me lembro da cena de chegar na fazenda, todo ensangüentado, vendo os filhos do Nêgo, o Tonho do João Preto, todos me vendo como herói, me machuca muito. No dia foi bom para mim porque se tivesse caçador naquelas bandas, eu também era um. Todo mundo começou a me respeitar porque matei sete tatus de uma só vez. Quando fui contar para meu pai, em vez de parabéns só perguntou:

- Porque não matou só um?

Foi depois daquele dia que comecei a ver o que é o ser humano perante a natureza. Perguntei para a minha mãe:

- Vamos comer tatu hoje, mãe?

Respondeu:

- Não, tem uma carne de porco perdendo na gordura.

- Só um, mãe!

- Eu não sei limpar esse bicho, não.

O pior foi que meu pai já estava com o Beija – Flor (cavalo dele) arreado para ir na cidade.

- Ô Zé Batista, faz um tatu para nós?

- Mexer com isso não.

- Ô Sô Nêgo, quer um tatu?

- Minha mulher já enjoou deste bicho.

Sai o Nêgo para roça, o Zé Batista tocando o Jipe – cavalo trotão - com a cangalha de leite para levar para o leiteiro. Meu pai de botina nova, bigode no capricho, Beija – Flor até com coxinilho, falando que ia na cidade ver minha avó e comprar fumo. Ficou eu, o Peri e os filhos do Nêgo olhando aquele meu troféu.

Foi só um instante de glória e uma vida inteira de arrependimento. Nas férias vieram meus primos da cidade e levaram aqueles cascos de tatu para se vangloriarem de suas falsas proezas. Contavam para seus colegas da cidade que era um tatu fêmea enorme que correu atrás deles. Enquanto ela corria atrás de um os outros mataram os pequenos filhotes. Quando a mãe entrou no buraco para procurar seus filhos, tamparam o buraco com terra, deixando-a sem ar até ela morrer asfixiada. Que grande vantagem! Além de saberem que era mentira, também era uma grande covardia.

JOSÉ EDUARDO ANTUNES

Zeduardo
Enviado por Zeduardo em 19/11/2010
Código do texto: T2624972
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