O DIA EM QUE UMA VACA COMEU MINHA JAQUETA DE COURO
O DIA EM QUE A VACA COMEU MINHA JAQUETA DE COURO
Seria mais um fim de semana juntos. Havíamos combinado de ir pescar nas barrancas do Iguaçu, próximo a Curitiba. Isso foi lá pelos idos de 1950 ou 60.
Até a estação de General Lúcio iríamos de trem. Seguimos para o bairro do Portão, onde ficava a primeira estação e embarcavam mais pescadores e caçadores. Depois passamos pela estação do Barigui, a de Araucária e, finalmente, General Lúcio! Agora a estrada seguia, mas o trem não mais.
Chegando lá fomos direto para o rancho do pai de um amigo, o Miltinho. Lá pegamos mais tralhas entre panelas chaleiras bule, e começamos a arrumar nossas tralhas na canoa de madeira (bateira) com fundo chato feita à mão. Descemos então o rio nos equilibrando em cima da canoa. Éramos quatro: eu, o Miltinho, o Guinho e o Jair.
A canoa ia carregada, mal podíamos nos mexer senão entrava água. Naquela época pelas límpidas águas do Rio Iguaçu e ao sabor do vento deixamos que as correntezas do rio nos levassem até o pesqueiro rio abaixo.
O risco de virar o barco era grande e ainda por cima o nosso amigo Guinho era meio louco, aloprado e já tinha tomado uns goles daquela cachaça.
Em um determinado momento ficou de pé e começou a mijar, digo, fazer xixi, a urinar no rio e, pra nossa infelicidade, bem na hora em que estávamos passando em frente da casa de um morador ribeirinho que aos brados nos repreendeu: olha a falta de respeito, aqui tem família!
Ficamos preocupados e com medo por dois motivos: de a encrenca tomar corpo e de o amigo ali em pé, se equilibrando na canoa, cair e virar a nossa embarcação diga-se de passagens bem que poderia ter caído e levado um bom banho e assim currar um pouco o porre.
Enfim descemos o rio com a força da correnteza. No leme o mais experiente, o Miltinho, que logo atracou a canoa na barranca. Ancoramos, descarregamos as nossas tralhas e montamos o nosso acampamento. Esticamos uma grande lona fazendo a vez de uma barraca entre duas grandes árvores. E, num gramado muito limpo e muito verde, à beira do rio, logo atrás do acampamento, havia um pasto bem formado, e nele alguns animais domésticos como vacas, cavalos, porcos e galinhas: criações comuns de pequenas propriedades de regiões interioranas.
Começamos a pescar e armar os catueiros, e linhas de mão. Depois acendemos o fogo colocamos a trempe, em cima a chaleira cheia d’água pra ferver.
À tarde foi caindo o sol. Por fim desapareceu no horizonte e ao mesmo tempo o tempo começou a virar. Escureceu para chover e não demorou nadinha despencou aquele aguaceiro sem tamanho. Tinas d’água se derramavam sobre o acampamentoe relâmpagos clareavam a noite escura.
Nossa lona tipo barraca se desmilinguiu de tanchuva. Tratei de proteger nosso rancho: pães, bolachas, salames, linguiças, ovos e outras guloseimas de pescador.
Não restou outra coisa senão partirmos no escuro e a pé pelas margens do rio. Cada um pegou um pouco das tralhas e seguiu. O barco ficou, bem amarrado. Subindo o rio debaixo daquela água, logo encontramos a casa do mesmo morador ribeirinho cujo nosso amigo passou mijando a frente de sua casa. Tivemos que pedir arrego, pedimos que atravessasse o rio conosco, aí iríamos a pé até a estação, para lá nos proteger do medonho temporal, mas o morador ribeirinho não quis arriscar em nos atravessar com aquele mal tempo. Ofereceu sua casa para nos abrigar.
Nós ainda muitos jovens e da cidade grande estávamos com medo, era medo e respeito ao mesmo tempo do morador ribeirinho. Com certeza ele também tinha lá seus receios, afinal nós estávamos em quatro e todos estranhos para ele.
Aos poucos fomos pegando confiança e nos acomodamos em sua casa onde nos deu a maior atenção, mesmo com a esposa em resguardo de um bebezinho de pouquíssimos dias. Mulher bonita, morena de olhos azuis que até machucava a gente, de andar macio onde podíamos ver suas ancas bem delineadas.
Chovia torrencialmente. Para retribuir toda aquela hospitalidade e gentileza pegamos parte de nosso rancho e demos para o ribeirinho que consistia de três voltas de linguiça de Santa Felicidade, dois queijos da Dona Ruth que mora em Colombo e tem um filho miro lho que ataca quem vai lá comprar queijos. Dizem que nas sextas de lua cheia virava lobisomem.
Fomos nos acomodando na cozinha de chão batido, com o fogão feito de barro, já aquecido pelo fogo que o ribeirinho se apressou em acender. Era uma humilde casa, mas aconchegante e quentinha.
Preparamos nossa janta com alguns ovos fritos, linguiça, pão e café.
Já bem alimentados fomos nos aquietando.
Dormimos em cima de muita palha colocada pelo nosso anfitrião, tiradas de alguns sacos e de seu próprio colchão.
Tínhamos a certeza de irmos embora bem cedo no dia seguinte, porque chovia muito.
Para agradecer a hospitalidade que recebemos, presenteamos nosso anfitrião com nossos velhos e rasgados cobertores e mais do que sobrou do rancho.
O dia amanheceu e, para nossa surpresa, um lindo dia. Sol forte. Colocamos nossas roupas para secar, foi então que achei falta da minha jaqueta de couro. Fomos ficando por ali na frente da barranca do rio pescando. O tempo foi passando e a fome foi batendo e nós não tínhamos mais nada pra comer.
Começamos a pensar no que iríamos fazer pra arranjar comida, o pobre do ribeirinho parecia que só tinha o que nós deixamos pra ele.
Engano nosso.
Mais uma vez aquele senhor nos acolheu e nos ofereceu comida, dividindo conosco o pouco que tinha, demonstrando sua bondade, simplicidade e solidariedade e humildade.
Pois acabamos comendo tudo aquilo que demos a ele e mais uma panelada de arroz que ele cozinhou pra nós.
Ele só ficou com os cobertores rasgados e algumas peças de roupas velhas. Certamente ele aproveitou bem.
O dia acabou.
Fizemos nossa pescaria. Pegamos carás, traíras e bagres.
Fomos buscar a nossa canoa (bateira) e os restos das traias e procurar minha jaqueta de couro usada, surrada, encardida, já sem forro. Sem contar que o suor salgado já tinha manchado o colarinho, as mangas, os punhos...
Isso lá é acepipe de vaca?
Só encontramos um pequeno pedaço de couro dependurado na boca de uma vaca mascando os restos da minha formosa jaqueta, que deixei cair no atropelo da noite escura e chuvosa.
Voltamos pra casa. Já faz muito tempo, mas nunca vou esquecer a hospitalidade e solidariedade daquele humilde morador ribeirinho. O seu Juca, aquela criança já deve estar velha hoje e jamais esquecerei a beleza daquela morena de olhos azuis.
JCS 12/10/10