O JOGADOR

Audálio, homem de hábitos simples, pouco instruído, vivia maritalmente com Marieta filha de um parente distante. Mulher que apesar das dificuldades impostas pelas circunstâncias da vida, demonstrava uma certa alegria de viver. Desempenhava seus papéis de esposa, mãe e dona de casa com inusitada dedicação, muito embora não descartasse o firme desejo de uma vida melhor, mais confortável. Não que lhe faltasse o essencial para sua modesta sobrevivência; longe disso.

Por seu turno, Audálio era daquele tipo de homem trabalhador dedicado ao ofício de ajudante de torneiro numa indústria de laticínios. Lá se iam quase vinte anos de trabalho ininterruptos sem uma falta sequer. Respeitado e ao mesmo tempo querido na comunidade a que pertencia, Audálio parecia na sua simplicidade ser um homem até certo ponto feliz. Mesmo diante das dificuldades financeiras inerentes à sua condição de operário parecia satisfeito.

Residia numa modesta casa de alvenaria composta de sala, dois quartos, cozinha, banheiro e, na parte fronteiriça, um exíguo alpendre. Tudo isso inserido num diminuto lote de terreno que herdara de um falecido tio. À noite após o jantar, tinha por hábito sentar-se juntamente com Marieta no referido alpendre onde passavam horas remoendo os acontecidos do dia. Vez por outra eram surpreendidos por um cochilo interrompido por algum vizinho a cumprimentá-los.Rotina que os acompahava desde bastante tempo. Em seguida se recolhiam alimentados por uma forte esperança de dias melhores.

Os filhos, duas meninas e um menino nas idades de dez, nove e sete anos respectivamente, estudavam numa escola pública próxima à sua residência. Pela manhã logo cedo, Marieta se dirigia à cozinha a fim de preparar o café. Em seguida inspecionava as roupas das crianças acordando-as com um afetuoso beijo. Após o café da manhã, como sempre revestido de costumeita frugalidade, as crianças se despediam da mãe ocasião em que eram repetidas as mesmas recomendações. Assim, iam alegres como passarinhos em gorgeio no despontar de um novo dia, sob os cuidados infantís da mais velha.

A essa altura da manhã Audálio já partira na direção da fábrica tendo antes, como por hábito, beijado afetuosamente sua mulher. Ritual que se repetia todas as manhãs, acompanhado das mesmas recomendações costumeiras. Dentre outras, revestia-se de grande importância quando asseverava: Mariete, minha querida, no dia que eu voltar para casa de táxi, antes de abrir a porta não hesite em destruir todos esses móveis velhos; toda essa quinquilharia que temos em casa, pois seu marido acertou no jogo do bicho. Tal afirmação se fazia acompanhar por um indescritível brilho nos olhos. Havia mesmo como que certeza da concretização de tão almejado sonho. Marieta, por suas vez, recomeçava a labuta diária. Assim passaram-se anos e mais anos enquanto que a rotina não sofria a menor solução de continuidade.

Audálio já no interior do ônibus superlotado e, sobremaneira, desconfortável, seguia alheio ao que se desenrolava lá fora durante o trajeto. Buscava, com renovada ansiedade, decifrar os sonhos que porventura tivera na noite precedente. à medida que as lembranças iam se fazendo presentes, procurava estabelecer correlação com o jogo do bicho pois, na verdade, ele representava um assíduo e perseverante apostador. Vale ressaltar que uma das primeiras providências após o recebimento do minguado salário, consistia em destinar uma pequena quantia para as apostas diária. Enorme era o sacrifício uma vez que o salário recebido em troca de exaustiva jornada de trabalho mensal deixava muito a desejar, pois a exemplo da maioria dos trabalhadores, o seu salário acabava mesmo antes do término do mês.

Asiim é que no fundo da sua sabedoria procurava relacionar os acontecimentos, pessoas, etc., emergidos na lembrança dos sonhos com os bichos inseridos na roleta. Exultava quando por ocasião da coincidência dos seus sonhos com evidências ligadas a cachorro, cabra, carneiro,camelo, cobra, coelho e cavalo, todos iniciados pela letra "C". seus favoritos. Decorreram anos sem a menor alteração, tudo permanecendo no mesmo como no fato da troca de seis por meia dúzia.

Um belo dia, já nas proximidades do Natal Audálio ao saltar do ônibus nas cercanias do seu local de trabalho acontecera o inesperado. Ao tentar atravessar a rua naquela hora da manhã, quando intenso era o fluxo de veículos, deparou-se, inopinadamente, diante de um caminhão que avançava na sua direção, apesar de desenvolver regular velocidade. Debalde foram os esfor~ços desprendidos pelo infeliz no sentido de se livrar do iminente impacto. Não houvera mesmo chance de evitar o infausto acontecimento. Consumado o imprevisto, Audálio foi atirado abruptamente a uma considerável distância. A exemplo de ocorridos semelhantes, imediatamente se formou um aglomerado de pessoas em torno daquele corpo inerte, sendo que uns poucos, de pronto, providenciaram sua remoção para o hospital mais próximo a fim de que fossem dispensados os socorros necessários. Para a sua sorte, apesar do impacto sofrido, apenas algumas escoriações se fizeram presentes ao longo do corpo além de uma fratura no fêmur da perna esquerda, lesãso constatada após a realização dos exames radiológicos rotineiros.

Realizado o atendimento de urgência requerido pelo acidente em apreço, Audálio teve a perna engessada seguindo-se das recomendações pertinentes ao caso feitas pelo médico que lhe atendera. Repouso absoluto nos primeiros trinta dias, decorridos os quais, aproximadamente entre sessenta e noventa dias, deveria retornar ao hospital para a remoção do gesso que lhe imobilizara a perna.

Decorridas algumas horas do inusitado acontecimento, Audálio foi acomodado num táxi e em seguida conduzido a sua residência. Durante o percurso que medeiava entre o hospital e sua residência, o pobre homem não pensava nada mais além das obstinadas recomendações diárias que fazia à Marieta. Isto posto, de imediato sentira-se invadido pon insólita preocupação; o suor banhava-lhe o rosto; suas mãos se fizeram trêmulas; acometera-lhe profundo empalidecimento. Acreditava, sem a menor sombra de dúvida, que sua mulher cumpriria à risca tudo que ao longo dos anos lhe recomendara.

Antevia, com plena convicção, que Marieta ao se deparar com ele chegando em casa transportado por um táxi, não titubearia diante dos fatos. Imbuído de profunda humildade implorou a Santo Expedito com inusitada devoção que o poupasse da tragédia que estaria prestes a acontecer. Robustecido pela esperança de que o Santo lhe atenderia naquele momento de inominável aflição, deixara-se envolver de profunda emoção.

No exato momento em que o táxi estacionou fronteiriço à sua residência já era grande o aglomerado de vizinhos. Todos impelidos por uma curiosidade sem limites, procuravam se inteirar da realidade dos fatos. Marieta ao se defrontar com o marido ainda no interior do táxi e sem esquecer dos mínimos detalhes das repetidas recomendações, nãso poupou esforços em concretizá-las. Sem demora, armou-se de um porrete começando a destruir aqueles móveis velhos; louças, panelas, eletrodomésticos, tudo em consonância como o recomendado.

Foi um estardalhaço dos diabos.

Nessa altura dos acontecimentos, os vizinhos visivelmente perplexos, julgavam que a pobre Marieta havia enlouquecido. Estava mesmo possuída pela "pomba gira" no entender de Mãe Avelina respeitada Mãe de Santo da comunidade. Concluída a destruição dos modestos pertences do casal, Marieta surge à porta com ares de profunda felicidade estampada no rosto. Para sua surpresa, se depara com o marido sendo retirado do interior do táxi com a ajuda dos vizinhos tendo a perna engessada. Assim, toda aquela felicidade contida em Marieta dera lugar a uma profunda decepção como se fora num passe de mágica.

Ainda não fora desta feita que a tão almeja sorte batera-lhe à porta.

wellmac
Enviado por wellmac em 09/11/2010
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