O Caso da “Vara Errada”
Escrevo para sublimar minha pulsão e dar forma e voz à babel que me povoa interiormente. Não sou a obra que faço. Ela é melhor e maior do que eu. No entanto, revela-me com uma transparência que jamais alcanço na conversa pessoal. Tenho medo também de minha própria fragilidade. O texto tece o tecido de minha couraça. Com ele me visto, nele me abrigo e agasalho. É o meu ninho encantado. Privilegiado belvedere do qual contemplo o mundo. Dali posso ajustar as lentes do código alfabético para falar de religião e política, de arte e ciências, de amor e dor. Recrio o mundo. Por isso, escrever exige certo distanciamento.
Frei Beto
I
Entrar na Vara errada! Eis algo que nunca supomos ou imaginamos poder acontecer conosco. E eis algo que não devemos também desejar sequer para o nosso pior inimigo!
Mas estamos tratando de um fenômeno tão natural e divino quanto a chuva, a passagem do tempo e das estações. E sabemos que um dia algo desse tipo atravessará inevitavelmente pelo nosso caminho.
Mas no antigo prédio da Rua Goitacases isso acontecia muitas vezes. E - como tudo que é bastante popular e democrático - se espalhava entre todos de forma indiscriminada e com determinada constância que eu acredito fosse mesmo diária: em dado momento era um estagiário de Direito que se enganava redondamente a respeito do andar em que se encontrava distraído que vinha com as lindas pernas de uma sua colega de escola; noutra hora era um servidor mais avoado ou assombrado e pensativo diante das muitas dívidas e contas que o ameaçavam diretamente do bolso de sua calça; finalmente, tínhamos os casos de alguns juízes completamente distraídos com alguma frase de sentença dançando ou martelando em suas cabeças e fazendo com que invadissem enganosamente alguma Secretaria de Vara errada.
Mas no novíssimo Fórum trabalhista da Av. Augusto de Lima isso já não ocorre com tanta freqüência. Outro dia, porém, tornou a acontecer comigo. Passo então a dar o meu próprio testemunho a respeito desse assunto melindroso: o que acontecia quando invadíamos sem querer o ambiente de uma Secretaria que não era aquela aonde trabalhávamos.
II
Na Rua Goitacases era costume subirmos os andares a pé, uma vez que muitos de nós laborávamos no quinto, no sexto ou no sétimo andares. Como os elevadores viviam sempre cheios e mantinham graciosamente diante de si uma longa fila que preenchia quase todo o hall de entrada do edifício, optávamos muitas vezes por subir as escadas a pé.
Mas esse sexto ou sétimo andares eram também muito relativos na ordem da teoria da relatividade. O caso é que entre o primeiro e o sétimo havia ainda um andar onde se localizava o Banco do Brasil e a Caixa Econômica e outro que não tinha porta ou passagem para lugar algum, sendo apenas ocupado pela assombrosa escadaria em círculo. Então já não eram seis os andares que muitas vezes tínhamos que subir, mas oito ao todo e essa era uma das causas de cometermos algumas daquelas confusões em nossa escalada até o local de trabalho. A outra era certo avoamento natural e característico do ser humano em geral e dos funcionários públicos em particular.
Distraídos, algumas vezes acabávamos perdendo a conta de quantos andares já havíamos percorrido e entrávamos sem querer na Secretaria do andar imediatamente superior ou inferior ao nosso. E nesse momento - meus amigos – nesse momento o que nos restava era ir para o abraço: era uma surpresa muito chata de fato, mas suficientemente engraçada sob outro ponto de vista.
Logo ao abrirmos a porta da Secretaria percebíamos estar num ambiente – e por que não dizer! - num mundo completamente diferente daquele que habitávamos em nosso dia-a-dia. No entanto, levávamos alguns segundos até adquirirmos a completa consciência de toda aquela diferença.
Mas logo que dávamos pela coisa, voltávamos imediatamente. Mas o que de fato insistia em permanecer em nós era certa sensação sem graça. Então fechávamos rapidamente a porta da Secretaria e saíamos dali o mais rápido possível.
Mas o terrível mesmo era quando encontrávamos atrás da porta a presença de algum colega da outra Vara do Trabalho. O fato é que muitas vezes esse companheiro ou companheira em questão se dirigia a nós nos seguintes termos:
- Entrou na Vara errada, não é?!
Em seguida o colega deixava escapar uma sonora gargalhada ou um simples sorriso sarcástico diante da nossa reação e da triste cara de espanto que carregávamos conosco.
Pois então é isso: eis toda a história.
Deixo-lhes no término desse caso - data máxima vênia! - o seguinte conselho de amigo e colega mais velho e mais antigo: procurem sempre tomar o maior cuidado ao adentrarem o suposto ambiente de suas Secretarias, pois podem muito bem estar entrando na Vara errada!
Agora: se isso de fato vier um dia a lhes acontecer, lembrem-se que não foram os únicos ou os primeiros e que certamente não serão também os últimos!