OPINIÃO DE JARARACA

As festanças da igrejinha do vilarejo teriam passado quase despercebidas pela ‘negrada’ do lugar, se não fosse o mau jeito que Nina levou em pegar barriga, e logo, ali, em dias especiais, durante as duas semanas da quermesse religiosa, as quais se davam anualmente.

Lá, onde fora Serrinha, eram tradicionais as disputas, ano a ano, entre o partido azul e o partido encarnado, nas festas de Nossa Senhora de Lourdes, a padroeira da atual vila de Guaci. Já de miúdo, ainda sem inclinações avermelhadas, eu sempre fui da banda do encarnado. Ih, mas o zé-povinho papa-reza da vila se esbaldava, de janeiro a janeiro, a fim de ir ver, ouvir e aplaudir as estripulias feitas ao longo das aclamações à santa.

Imaginem os festejos e diversões!... Fogos a espocarem, no ar. Leilões e bandinhas de música, à noite, com filas de barracas de palha dos dois lados da rua larga, a principal, esta que ia justo bater lá nas goelas do patamar do templo. Montando guarda à igreja, duas gigantonas palmeiras imperiais. E eram comidas típicas, a valer. Eu, doido por pé-de-moleque e aluá de pote.

Os jogos de argola que davam prêmios, o pau-de-sebo armado num canto, para meninos atrevidos tentar sacar a nota de cem e levarem-na como paga. E ola de cavalinhos, girando, e roda gigante e tudo o mais. Barraca do partido azul, outra do partido encarnado. O meu pessoal só ficava, para dar despesas, na barraca do partido encarnado.

A ‘negrada’, como ia dizendo, e aqui me refiro à rapaziada jovem, nem teria notado as apimentadas implicações da festa da padroeira, se a Nina, de Dona Filó, não tivesse embarrigado e, já lá pelo terceiro mês, depois dos feitos festivos, não andasse por acolá, de barrigão cheio e à mostra.

Festa acabada, tocadores a pé, o padre novato que viera celebrar os festejos da capelinha mandou-se de volta para a sede do município. E ninguém, ninguém mesmo, de modo algum e de sã consciência, dava pela má feitura de volume na barriga da sonsa donzela Nina, moça recatada, até então, prendada, pacata e rezadora em todos os ofícios de fé da ermidinha do povoado.

Mas não só a turminha jovem, a dita ‘negrada’, também os mais anosos, e com mais força a lapa de língua de Dona Felipa, que representava o clube das más línguas mais afiadas e ferinas de Guaci, todo aquele povaréu matuto ficava a se interpelar quem teria tido o topete de mexer com as boticas da honra da filha da viúva de Seu Isidoro.

E os gaviões moços da velha Serrinha se perguntavam, cada vez mais, com mais pares de orelhas em pé, quem, quem diacho fora que teria chafurdado no coreto da pobre e honrada filha de uma viúva tão boa-gente e bem vista, em Guaci. Todos tinham a velha viúva em alta conta, até pelo s t a t u s que o finado marido de Dona Filó ocupara como cabo de polícia, servindo ele no minguado destacamento local.

O cabo Isidoro, inclusive, era useiro e vezeiro em bancar as arriscadas vezes de subdelegado, assim permanecendo à medida que se finava de tanto matar o bicho e encher o bandulho. Pois que assim fez – honradamente, e praticou – até quando, sem poder mais, já na reserva, comia cachaça com farinha e pegou cirrose hepática.

Ali, matutavam os contumazes fofoqueiros de Guaci, naquele barrigão improvisado, sem pai declarado nem explícito, estava coisa mais misteriosa que botava comichão na língua de Dona Felipa e mais ainda nos dentes da pequena trupe de faladeiras do pequeno e ordeiro distrito do município de Redenção. E eles todos, os linguarudos filhos de Candinha, entre si, perguntavam-se na mesma intensidade que os fogos de artifício já haviam pipocado nos ares à época dos dias de festejos em devoção à santa padroeira:

“– Quem diabo, meu Deus, por aqui, que coisa-ruim teria ferrado a filha de Dona Filó, se a menina nunca nem apareceu com namorado?”

Era certo e líquido o sábio falar dos faladores... Quem diabo? Sendo que a Nina uma donzela virgem, juramentada e ainda inédita, sem que ninguém jamais lhe houvesse enxovalhado o corpo, até por ser filha do finado cabo de polícia, respeitado e temido, em termos relativos. Ainda em dias de vida, e Seu Isidoro interinamente ocupante das altas e merecidas funções de subdelegado, quem é que seria besta para ir passar nos peitos a tão pacífica, puritana e quase beata caçula de Dona Filó?

O fato é que o barrigão de Nina cresceu, avolumou-se e, lá um dia, depois dos jurados e sacramentados nove meses, o outeiro enorme de pança da menina veio às tampas e se foi a furo. Nasceu um meninão macho, e vocês não imaginam nem de longe nem me vão dizer, assim de chofre, com que cara o danado do curumim raiou para o horizonte dos terráqueos.

Mas a aparência com o pretenso pai só se ressaltou meses depois, que toda criancinha quando vem ver o sol – sem exceção – tem as mesmas fuças. Seis meses, por aí, e doravante, tempos mais, o bebê da Nina floriu que foi uma beleza de curumim, com linhas e traços nas faces bem definidos que denunciavam a paternidade do vigário de passagem pela histórica Redenção, no Ceará, Brasil.

Por questões humanitárias e humanísticas, também, nem lhe declinamos o nome, um padre novato, que veio para aquela cidade do Maciço de Baturité só de faz-de-conta, coisa de poucos anos, que pároco lídimo, virtuoso e duradouro na cidade que primeiro libertou seus escravos, no Brasil, foi o eminente e inesquecível padre Bezerra, cuja graça era Antônio, ele, um dos venerandos membros dos notáveis Bezerra de Meneses, do clã do fantástico e caridoso médico e médium Adolfo Bezerra de Meneses, filme nas telas e tudo.

Ah, mas esse tal padre Bezerra, sim, é que foi um reverendo santificado, que no meio das praças, em Redenção, na vila de Guaci, na Faísca, até em Fortaleza, arrebanhava uma falange de meninos miúdos para lhe escutar histórias e mais estórias, cheias de bons exemplos de cristandade. Ô homem para contar bem as potocas da Religião!

Opinião de jararaca, boca aferrolhada, firme e silente como maçaranduba, teve aquela mocinha que ajudava como zeladora da sacristia e da ermidinha da imaculada Nossa Senhora de Lourdes. A nobre rapariga filha de Dona Filó e do falecido cabo, com honras de ter sido interinamente subdelegado de polícia, jamais deu com a língua nos dentes. Ficou para tia, mas não abriu o bico nem revelou quem era o autor do filho que parira.

O pivete da encalhada moça, tímida demais que ela era, mas tão bonitona e adequada para a cama, floresceu mais, ficou que foi a cara toda, escarrada e cuspida, do padre que por apenas uma única vez oficiou missas e animou os leilões da quermesse da igreja de Guaci; e que, ainda, pelas aparências, se estas não nos falham, timbrou a mãe de Lucas Jr. Só não me perguntem de onde Nina tirou aquele “Júnior”, posto que a graça do galego padre suspeito da paternidade não era Lucas.

De fato, esse guri, por sinal um tipinho de nenê da Johnson, de rosto róseo e bem talhado, à moda dos gringos, saiu inteirinho com as fuças do padre alienígena, logo desabado da sede do município. O peste de bebê virara um garotão de seus dez anos, isto há montão de anos passados, lá muito atrás, quando o vi pela última vez, numa das minhas idas e vindas ao povoado onde cumpri minhas primeiras lições de tabuada.

Opinião de jararaca, geniosa, Nina sentou praça no caritó. Soube que ficou para titia, de carteirinha no bolso, mas nunca traiu o seu mal feito: fez eterna boca de siri. Nunca botou na rua que, de certo, numa daquelas suas ajudas voluntárias, ao ir cuidar dos trecos da ermidinha e zelar pelo vinho do sacerdote garanhão, fora que o filhote Lucas Jr. emergiu à tona e deu com as ventas na luz do sol.

Firmeza e gênio ruim, na hora de ser discreta, a solteirona de um filho só e sem pai da vila de Guaci defrontou-se com inúmeros preconceitos e cantadas da ‘negrada’ do lugar. Contudo, sovinice lá dela, não abriu mais as pernas. A moça nunca, jamais e em tempo nenhum, sequer fez menção de desabotoar o nome do progenitor de seu rebento, o Lucas Jr. Mistérios, até hoje, encubados ali nos bofes do silêncio.

Fort., 14/10/2010.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 14/10/2010
Reeditado em 15/10/2010
Código do texto: T2556408
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