O Sorriso e a Bunda

Uma janela verde para a quitanda da Yuda e da Fátima. Uma máquina de café para a revistaria da Cristina e do Guto. A tão esperada licença maternidade para a Adriana, que atende na locadora. Esses são alguns sonhos locais.

Sandra quer deixar de ser caixa da padaria, ganhando na loteria, enquanto Suzana quer casar com um "pão", rico e "bão", para não ter mais que serví-los, os pães. Eis aí mais alguns deles, os sonhos locais.

Seu Tavares adoraria vender mais suas mesas artezanais, pois quer sossegar. Ivan, suas tintas, solventes e pincéis, pois quer ampliar. Imobiliárias clamam por mais terrenos para suas casas, enquanto o Zé, mais cães para suas rações. Sonhos locais.

Menino quer mais usuários para suas drogas, enquanto Carlos também, para as da sua farmácia e Freitas, outros tantos, na locação de seus carros. Lauro gostaria de mais fiéis para os dízimos de sua igreja e Sara, mais mentes alternativas, para suas aulas de ioga. Dna. Deôla, o amigo Extra e o primo Leroy-Merlin estão muito bem, mas mais freguêses são sempre bem-vindos a seus pães e doces, produtos variados e materiais para construção. Somam-se assim, mais sonhos locais.

Marcos quer trânsito para vender mais gasolina, enquanto Roberta foge dele para chegar mais cedo ao trabalho. Lalo sonha com um home teather, na sua sala de estar, enquanto Bela sonha com ele, Lalo, poder estar. Cíntia quer ganhar mais nas suas faxinas e Pedro a quer em sua casa, mas não para as faxinas. Paula quer um frigo-bar para o seu quarto e sala e Cláudio comprar um para ela e, talvez, poder estar nos dois. Mirtes quer um tampo de vidro para sua mesa da copa e Tales quer que o Brasil se dê bem, na Copa. Mais sonhos locais.

É tão fácil falar sobre o que os outros querem. Querer é um impulso evidente, de difícil dissimulação. Com dois meses de estadia, aqui no bairro, percebi quase todos, os confessáveis, claro. É difícil encontrar pessoas que consigam, indefinidamente, guardar seus desejos. Difícil? Sim, mas não impossível, pois esse é o caso de Ruth. Desde sua juventude, quando se apaixonou pelo namorado da irmã, aprendeu a sufocá-los. Depois houve aquele caso, com o marido da colega de trabalho. Uma moça simplória que, com certeza, não merecia ser abandonada. E ainda aquela sua parte no dinheiro da herança, que seria tão útil, não fosse a doença do irmão caçula, que o comeu por inteiro. O dinheiro, claro, pois o irmão está bem vivo. Ruth se subtraia de quase tudo que a ela viesse. Por motivos estranhos e coincidentes, de algum modo, a vida lhe reforçava o hábito de abdicar, deixando-lhe sempre claro tudo sobre aqueles que não teriam, caso da posse, ela lançasse mão. Muitas coisas lhe vieram, por obra e graça do destino, porém sempre acompanhadas com o maldito efeito colateral da culpa. Vale dizer, no entanto, que o que mais vinha a Ruth eram os homens, com seus interesses carnais. Também, não é pra menos, Ruth sempre foi dona de um corpo que...bem, haja Deus! Seu traseiro atraia mais olhares que o número de olhos disponíveis. Isso porque, ninguém o olhava apenas duas vezes e eu, muito menos. Ele sempre fez parte das fantasias noturnas dos homens locais. E das minhas, então, nem se fala. Durante o dia e sem muita discrição, suas nádegas eram comentadas a céu aberto em todos os pontos mais masculinizados do bairro. Eu não comentava, pois me apaixonei por ela, ela Ruth, claro, mas com as nádegas. Desenvolvi o hábito de proteger as duas. Azar o meu, pois não seria fácil proteger um alvo assim, tão visado. Mas, olha, aos poucos fui gostando. Ruth aprendeu a se sentir a vontade comigo, bastava que, nas minhas aproximações, eu nunca, em hipótese alguma, olhasse para elas, as nadegas, ou para uma ou outra parte de seu corpo por mais de alguns segundos. Ficava orgulhosa, inclusive, quando, com ar circunspecto, eu encarava de modo cínico e frio, aqueles que ficavam hipnotizados com o seu traseiro. Sempre esboçava um lindo sorriso, quando eu conseguia, com muita determinação, abaixar os olhares dos outros que, constrangidos, não voltavam a insistir. Seu sorriso era e ainda é magnífico, quase o mesmo tanto que sua bunda. Fazem um equilíbrio notável. Enquanto a segunda invoca meu lado animal, o primeiro lhe enche de encanto e dignidade. Nesses momentos de cumplicidade disfarçada, ela costumava entrelaçar seu braço ao meu, como quem quisesse sugerir ares de esposa. Funcionava como uma espécie de prêmio à minha constante vigilância. E de tanto fazer isso, somado ao fato de sempre me ver desacompanhado ou desinteressante aos assédios femininos, percebeu finalmente que, caso me tivesse, parecia não estar me tirando de ninguém. Casou-se comigo, afinal. Foi assim que, para toda minha glória, passei a ter aquele corpo completo, com bunda e sorriso, só pra mim, com direito a muita intimidade. Ruth acha estranho, mas interessante, o fato de eu não ser assediado por mulher alguma no bairro, pois me acha bonito. Incrível, mas ela não faz a mínima idéia da beleza que tem e do como isso aborta qualquer tentativa de eventual concorrência. Também não percebeu, até hoje, que foi assumindo parcialmente esse seu jeito de ser, que eu passei a tê-la. Só não abro mão dela para absolutamente ninguém, mas aprendi a me abdicar de todo e qualquer desejo, que não fosse o de viver ao lado daquele sorriso e daquela bunda o resto da minha vida. Em certos dias valorizo mais uma do que o outro, ou o outro mais que a uma. O que importa é que, sorriso ou bunda, estando sempre por perto, é em Ruth, afinal, que eu sempre irei me revezar.

Dassault Breguet
Enviado por Dassault Breguet em 14/09/2010
Reeditado em 14/09/2010
Código do texto: T2497059