A VINGANÇA DA MEMÓRIA

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Numa certa manhã de domingo, surgiu, na pequena praça do vilarejo de Sensenso, um argumentador, metade psicólogo, metade lunático, que se pôs a argumentar contra a memória:

— Até agora vocês viveram enganados, estou aqui para lhes mostrar que suas memórias são inúteis porque as idéias são inatas em vocês...

Enquanto falava, de cima de um caixote, um pequeno grupo de pessoas se reunia a sua volta. E quanto mais pessoas paravam para ouvi-lo, mais alto o argumentador gritava:

— Quando vieram ao mundo já tinham todas as noções necessárias em suas inteligências, já sabiam tudo, em lugar de terem de adquirir com a experiência e o auxílio da memória. Por isso, a memória não serve para coisa alguma.

Nesse ínterim, uma multidão já se aglomerava na praça, e o consenso geral não era favorável ao argumentador. Tamanha era a fúria da oposição, que queriam queimar-lo numa fogueira, pela tremenda heresia.

Foi, então, que o Conselho de Anciões do vilarejo resolveu intervir. Mandou trazer o argumentador à sala de reuniões para que expusesse seus argumentos perante o conselho e pudessem tomar uma decisão. A princípio o conselho Sensence condenou tal proposição; não porque fosse ridícula, mas porque era nova. No entanto, quando o argumentador começou a falar, a falar, e a falar longamente que a memória era inútil, o conselho, apesar de não ter entendido patavina e não querendo ser taxado de ignorante, aceitou sua argumentação. Baniram, unanimemente, a memória. Ordenaram, por conseguinte, aos moradores, que acreditassem dali por diante nas idéias inatas do argumentador, e perdessem toda e qualquer crença na memória.

A condução mais comum no vilarejo era o cavalo, e havia aos montões. Mas, um entre todos, embora pertencesse a mesma espécie, diferenciava dos demais por ser um emissário de Pégaso. O emissário contou as novidades a Pégaso, e este foi repeti-las às Musas, que, durante uns cem anos, vinham singularmente favorecendo a vila.

Elas ficaram muito escandalizadas; amavam ternamente a Mnemósine, sua mãe, deusa da memória e esposa de Júpiter, à qual essas nove filhas são credoras de tudo quanto sabem. A ingratidão dos homens irritou-as. Não satirizaram os antigos nem os habitantes de Sensenso, porque as sátiras não corrigem ninguém, irritam os tolos e os tornam ainda piores. Elas imaginaram um meio de esclarecê-los, punindo-os. Os homens haviam blasfemado contra a memória; as Musas, então, lhes tiraram esse dom, a fim de que aprendessem de uma vez por todas, a que se fica reduzido sem o seu auxílio da memória.

Aconteceu, pois, que durante uma bela noite todos os cérebros se obscureceram, de modo que, no dia seguinte, de manhã, todos acordaram sem a mínima lembrança do passado. Alguns sensences, deitados com as suas mulheres, quiseram delas aproximar-se por um resto de instinto, independente da memória. As mulheres, repeliram asperamente as suas carícias, e a maioria dos casais acabou às tapas.

Alguns senhores, encontrando um chapéu, serviram-se dele para certas necessidades que nem a memória nem, o bom senso, justificam tal atitude. As senhoras empregaram para o mesmo uso as panelas. Os criados, esquecidos de que foram contratados para servir os patrões, entraram em seus quartos, sem saber onde se achavam; mas, como o homem nasceu curioso, abriram todas as gavetas; e, como o homem ama naturalmente o brilho da prata e do ouro, sem ter para isso necessidade de memória, apanharam tudo o que estava a seu alcance. Os patrões quiseram gritar: pega ladrão! Mas, tendo-lhes saído do cérebro a idéia de ladrão, não pôde a palavra lhes chegar à língua. Cada qual, tendo esquecido o seu idioma, articulava sons disformes. Era muito pior que em Babel, onde cada um inventava imediatamente uma língua nova.

A inata inclinação dos moços pelas mulheres bonitas se manifestou com tal necessidade, que, atrevidos, se lançaram, irrefletidamente, sobre as primeiras mulheres, ou quem tinha a aparência de mulher, fossem estas trabalhadoras ou peruas; e elas, esquecidas de tudo, deram-lhes toda liberdade.

Chegada a hora do almoço, era preciso almoçar; mas ninguém sabia o que fazer ou como fazer. Não tinham ido ao mercado, nem à feira para comprar ou mesmo para vender. Os criados tinham vestido a roupa dos patrões, e os patrões a dos criados. Todo mundo se olhava embasbacado. Os que tinham mais jeito para obter o necessário conseguiram um pouco com que viver; aos outros, faltou-lhes tudo. Os membros do conselho e os religiosos andavam inteiramente nus, estava tudo muito confuso, iam todos morrer de miséria e de fome, por falta de mútuo entendimento.

Ao cabo de alguns dias, as Musas tiveram piedade dessa pobre gente: elas são boas afinal, embora algumas vezes façam sentir aos maus a sua cólera. Suplicaram, pois, à mãe, que devolvesse àqueles blasfemos a memória que lhes havia tirado. Mnemósine desceu, então, à região dos desmemoriados, onde tão temerariamente a tinham insultado, e falou ao conselho nos seguintes termos:

— Perdôo-os, imbecis de Sensenso, mas lembrem-se de que sem memória não há senso e, sem senso não há nada.

Os anciões do conselho agradeceram-lhe secamente, e decidiram votar a favor da memória, unanimemente. ®Sérgio.

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Este conto é uma versão de Dossier des Histoires, de François-Marie Arouet (1694 a 1778), que teve muito sucesso na França do século XVIII.

Se você encontrar erros (inclusive de português), relate-me.

Agradeço a leitura e, antecipadamente, qualquer comentário. Volte Sempre!

Ricardo Sérgio
Enviado por Ricardo Sérgio em 26/09/2006
Reeditado em 07/08/2013
Código do texto: T249442
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