ABEDULA – A CARNE DE ‘BASCOÇO’
* Da série ABEDULA
** Leia outros causos do árabe ABEDULA
Os campos do pampa de Uruguaiana amanheciam com uma camada de geada que davam a impressão de que o universo todo havia sido pintado de branco e foi numa dessas manhãs geladas que Abedula teve de se “encarangar” de frio para esperar na estação rodoviária a chegada à cidade de Housseff , um jordaniano que vinha de São Paulo recomendado por um velho amigo de Abedula, Mustafá , o mesmo que lhe dera conselhos excelentes para incrementar seus lucros, motivos suficientes para que ele se sentisse na obrigação de atender aos clamores de ajuda.
Chato de carteirinha , o sujeito nem bem desceu do ônibus e já foi maldizendo o clima da cidade , recitando trechos do Alcorão e invocando o auxílio de “Alá” , como proteção pelo vento que cortava a pele misturado ao frio enquanto a geada ia “levantando” aos poucos e permeando os efeitos daquela friagem intensa. Abedula logo constatou que o sujeito não iria se adaptar bem aos “ares” de Uruguaiana.
Mas como tudo o que é ruim pode ficar ainda pior , nos dias seguintes Abedula foi tentando apresentar o sujeito aos demais membros da colônia árabe e aos outros habitantes da cidade que formavam a parceria de chimarrão e de conversas fiadas trocadas no centro comercial de Uruguaiana , contudo, o sujeito ia despertando um sentimento que orbitava entre doses de rejeição natural e, ao mesmo tempo, uma certa sensação de lástima .
Reclamava de tudo , desde a sala comercial que Abedula havia conseguido para que ele instalasse uma loja de calçados , até a qualidade da comida – nada , absolutamente nada parecia agradar ao jordaniano Houssein . Falava mal dos Judeus e quando os Palestinos ameaçavam um ar de felicidade com as críticas lançadas aos Hebreus, ele disparava cáusticos comentários a respeito de Yasser Arafat e sua Organização para a Libertação da Palestina – OLP – deixando os patrícios enfurecidos.
Num primeiro momento acusava os judeus de ladrões da “terra santa” e, logo a seguir , sem poupar palavras ao libelo , imputava aos palestinos o crime da “venda” de suas propriedades aos israelenses . “Bela ambição não berceberam o berigo”, dizia o chato ...
A rigor, Houssein era a própria confirmação daquela teoria inquestionável de que os chatos sempre existiram em qualquer raça e em todos os tempos e dentro desse contexto, é claro , logo surgiram idéias variadas de sacanagens tendo como o alvo a figura antipática do recém chegado.
Todas as sextas feiras no galpão que ficava aos fundos da Loja de tecidos de Abedula era feita uma reunião de confraternização onde compareciam não apenas os membros da colônia árabe, como também cidadãos uruguaianenses que conviviam na mais perfeita harmonia e integração com os imigrantes que haviam se instalado na cidade.
Afif , que era descendente de libaneses , compunha a segunda geração de imigrantes e sua integração com os brasileiros era tamanha que seus hábitos e rotinas de vida pouco guardavam da tradição oriental . Violeiro, gostava de “arranhar” as cordas , cantar, comer e beber, sempre brincando e descontraindo .
Foi numa dessas confraternizações que Afif resolveu comprar carne de pernil de porco e preparar uma receita semelhante à comida chinesa, cortando a carne suína em tiras finas para serem preparadas em panela de ferro, fritas com rodelas de cebola, pimentão e alho à gosto . Nem Abedula foi avisado da iguaria, porque a carne de “Hanzir” ( assim se pronuncia porco em árabe ) é condenada pelos Muçulmanos que no mundo islâmico consideram os cerdos animais sujos – é “pecado” comer essa carne ....
Quando a figura intragável de Houssein apontou à confraria do galpão de Abedula, foi logo indagando sobre o cardápio da noite, ao que Abedula prontamente respondeu : - “Hoje Afif vai brebara um brato com carne de bascoço de vaca” . Afif havia dito que a receita era à base de carne de pescoço de vaca ...
Dizem que o chato comeu até lamber os dedos ,mas não elogiou em nenhum momento a comida, como aliás jamais havia elogiado qualquer outra coisa ou evento desde que pisara no solo de Uruguaiana. Depois de já terminada a sessão de gastronomia, quando todos se preparavam para ir embora, um dos participantes da confraria dando uma de “barriga fria” deixou escapar para o antipático que ele havia sido enganado e que o prato digerido por todos era à base de carne de porco.
Dizem que o chato do Houssein teve um surto de fúria , babando e com arcadas de vômito, ao mesmo tempo em que Afif corria em disparada com seu violão rua afora porque era notável o risco da agressão física. Conta-se que o antipático retirou-se da confraria “bufando de raiva” e algumas semanas depois do episódio narrado partiu de Uruguaiana para nunca mais voltar e , dizem que retornou para São Paulo .
Desde então , guisado com carne de “bascoço” de vaca virou gozação nos pagos de Uruguaiana e sempre é lembrado como um menu a ser elaborado em jantares destinados aos antipáticos de qualquer natureza e de todo o gênero .