O ADJETIVO DE SEU VELOSO

O minúsculo e encapetado piauiense, já meio longevo, em curtíssimo espaço de tempo, virou uma grandiosa figura no cultivo das nossas amizades. Rapidamente ficou assim com meu pai. Enfim, transformou-se logo em um amigão dos três viventes, tão-somente, que éramos nós, lá em casa, mas também do restante do nosso pessoal.

Para o convívio harmonioso que permaneceu, sempre, até que largássemos os pés do bairro, ele foi vizinho de portas, no Monte Castelo, após a construção de um casario novo – tipo classe média – que montaram defronte ao comércio e residência de meus pais.

Baixinho, ele saíra de fábrica com o nariz dando de chinelo nos narigões de Gregório de Matos Guerra e de Juca Chaves. E sempre a fumar charutos, e a esnobar com novidades de linguagem, e a dizer pilhérias engraçadas.

Foi com esse anoso gajo formidável, aposentado telegrafista dos Correios e Telégrafos, que, por exemplo, aprendi a também, como ele, manejar com o adjetivo “piramidal”. De início, claro, não sabia bem o que diacho aquilo significava. Apenas como que meio adivinhava que fosse algo advindo da pirâmide. Quem o saberia? Porém, pela contextualização das frases que ele usava, passei a intuir e depreender que se tratava de coisa da melhor espécie.

Hoje, felizmente, ao menos com a ajuda do Aurélio, em uma acepção figurada, vejo que, de certo modo, eu acertava na mosca que a coisa queria mesmo dizer era “extraordinário, colossal, estupendo”. Ora, então, sim, coisa boa.

No amplo desvão em frente da quitanda, que ficava do lado da sombra, em número par, todas as tardes o baixinho homem, que fumava mais do que qualquer caipora, aboletava-se lá, numa cadeira, vez que, em lado oposto, a casa dele era toda banhada pelo sol.

Como, na semana, a esposa ia trabalhar, dando aulas, e o filho único do segundo enlace matrimonial fosse para o colégio, invariavelmente, após tomar conosco o cafezinho das três da tarde, vendo o tempo passar, ele se esmerava em cubar as moças transeuntes, mormente as com aquele corpanzil de violoncelo.

E, pois, à passagem de uma dona qualquer, desde que fosse bem torneada, assim com o jeitão de mulata da Avenida Marquês de Sapucaí, ou, então, que fosse de juba oxigenada, Seu Veloso proclamava baixinho, só para o meu ouvido, uma dúzia de ais, assim:

“– Ai, ai, ai!... Ave, Nossa Senhora! Que morena p i r a m i d a l!”

O termo novato para as minhas ouças – e eu já o manjava como qualificativo bom – soava como um festival de puras sonoridades. A depender da madama que levava a pecha modernosa, a palavrinha me saía mais bonita do que a própria portadora do elogio.

Mas as especialidades de Seu Veloso não se resumiam apenas em pitar charutos cubanos, comprados lá atrás da agência central dos Correios, na extinta Tabacaria Fênix, ou em esquadrinhar quadris de loiras de gabinete de beleza e mulatas de largas cadeiras, não. Habilidades outras ele possuía e as exercia com afinco e dedicação.

Para citar a mais patriótica das suas excelsas destrezas e heroísmo, por gosto próprio, sem faltar um dia sequer ao expediente, na repartição, havia trabalhado durante quarenta e oito anos, ininterruptamente, sem tirar nem férias, usufruindo apenas das chamadas licenças-prêmio, de cinco em cinco anos.

Outra habilidade, esta mais didática, foi o prazer que lhe dava de me repassar o alfabeto Morse, que aprendi todo, de cor e salteado. E aí eu só o vivia digitando em tudo que eram assentos, mesinhas e paredes, lá onde quer que, por sorte, encostasse o corpo. Mania minha, como num verdadeiro exercício de paranóia.

O piauiense era de família de boa cepa, com genealogia patenteada, e tudo. Teve até sobrinhos metidos a sebo. Um deles, de estrelas no ombro, da Aeronáutica, que anos antes fez levante revolucionário contra o governo de JK; outro, um burocrata do economês, que depois viera a ser ministro de Estado, aos tempos da última ditadura militar.

Conhecera melhor o Ceará do que o seu próprio território natal. Lá, no Piauí, ele fez concurso, mas, muito jovem, veio de malas e cuias transferido para cá, indo logo chefiar agências. De tão moço, uma vez, num ermo de sertão, o prefeito lhe fez a pergunta: “– E é esse menino que vem chefiar, aqui, a agência dos Correios e Telégrafos?”

Das inúmeras peripécias que ele me contou, esta aqui é imperdível. Depois de palmilhar o Ceará inteiro, deu de costados na terra de Chico Anísio, a nossa quase vizinha Maranguape. Safado que só, certo colega de Seu Veloso deu-lhe o mapa da mina.

Segundo o dito funcionário, este um macaco velho na cidade, havia chegado à zona do mulherio uma trepadeira que era da pontinha da orelha. E ensinou todos os passos para que o ilustre forasteiro chegasse até aos umbrais da horta. Claro que não iria desperdiçar fruto palatável, viúvo sendo ele e de longas hibernadas, já, sem ruminar sequer um único pezinho de pasto, há meses.

Foi lá, tintim por tintim, que a zona ficava em lugar discreto e estratégico. Não contou nem até três e se deu mal. A mulher-dama era de uma histeria altamente ruidosa, violenta e inusitada. Tanto arfava e fazia latomia com os beiços e com o corpo como metralhava rajadas de palavrões contra a pessoa do cavalheiro, ou digo melhor, a pobre vítima lá dela.

Uma vez cumprido o armistício de Seu Veloso, com a cessação da guerra, toc, toc, pé no caminho, e, de tocaia, lá na esquina do beco estava o camarada informante da raridade, a morrer de dar risadas, como quem diz: “– Também já passei pelos seus maus bocados e comi foi da banda ruim”.

Ainda muito doidão da raiva que o baixinho trazia, nos bofes, a ele, no entanto, só lhe restou, também, desembestar em grossa risadagem, a fazer coro com o companheiro que o metera na sinuca.

Fort., 03/09/2010.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 03/09/2010
Reeditado em 03/09/2010
Código do texto: T2476029
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