O menino do bracinho "Hang loose"

Quando tentamos nos lembrar de um fato do nosso passado longínquo, algo com mais de quinze anos, temos a tendência de aumentar bastante as coisas, quando esse fato aconteceu quando você tinha menos de dez anos, a tendência é que aumente ainda mais. Esse é o caso, uma grande fobia de infância aliada a um grande feito, isso se tornou histórico na minha vida.

Eu tinha uma fobia bastante incomum, apotemnofobia. Nunca conheci ninguém até hoje que sofresse com ela, o nome é estranho, aposto que ninguém que estiver lendo esse relato saiba do que se trata, mas embora o nome seja complicado, a fobia em si é bastante simples. O nome aponta para uma fobia que diz: “medo ou aversão a pessoas amputadas”, no meu caso não era apenas amputação, se a pessoa tivesse uma deformidade qualquer, como ter nascido com um apenas um olho ou apenas três dedos na mão, era ainda pior. O grau variava, sem braço dava mais medo que sem perna, sem os dois braços talvez fosse o auge.

Esse medo era tamanho, que quando eu via uma pessoa sem um braço vindo na minha direção, eu atravessava a rua, minha pernas ficavam bambas, começava a suar frio, acho que a pressão baixava, era algo muito ruim, só eu sabia o quanto sofria. Se estivesse acompanhado dava meia volta, pedia desculpas, sumia de vista. Quando algum amigo ou amiga dos meus irmãos ia lá em casa fazer uma visita, se fosse alguém que eu não conhecia, primeiramente eu me escondia e, do meu esconderijo, eu observava se a barra estava limpa para aí então, sair e poder cumprimentar a pessoa.

Meu avô foi o meu grande incentivador, foi ele quem me deu a primeira bola de futebol, foi ele quem me ensinou a chutá-la e, foi ele também que me levava e buscava na escolinha de futebol. Eu tinha um bom talento, era muito rápido e sabia driblar muito bem, meu único problema era fazer um gol, não conseguia de jeito nenhum, meu chute era muito fraco, eu era muito fraco, era muito magrelo e pequeno para a minha idade. Meu avô sempre falava comigo:

- Não se preocupa, o gol vai sair.

Eu lamentava todos os meus gols perdidos igual o Maradona, colocava as mãos na cabeça e caía de joelhos no chão, desolado profundamente com o erro. Na escolinha de futebol que eu freqüentava, os goleiros riam sempre de mim, faziam piadas, o que sempre me aborrecia bastante, me deixando frustrado. “O gol vai sair”, repetia sempre o meu avô, mas ele demorou alguns meses para acontecer. Um dia cheguei na escolinha e o treinador anunciou que iria ter um campeonato de futebol envolvendo os quatro grandes clubes do bairro, empolgação total, meu primeiro torneio oficial, estava excitado, ainda mais quando ele falou que cada clube iria representar um dos quatro grandes clubes do Rio, mas para minha pequena frustração, o nosso clube foi escolhido para representar o vasco da gama, sendo que eu sou torcedor do fluminense, paciência, o torneio iria se realizar no final de semana.

Eram dois turnos na escolinha, manhã e tarde, como eu estudava de manhã, tinha que treinar de tarde. O primeiro jogo foi na sexta de tarde, o pessoal que treinava de manhã não pôde ir, não conhecia esses meninos. Não tenho muitas recordações desse dia, só lembro que o clube representava o flamengo e que tínhamos ganho, não fiz gol, como já era esperado. Dia seguinte, sábado, a final seria de manhã, todos os garotos que treinavam de manhã estavam presentes. Nesses momentos de adrenalina você acaba nem lembrando das suas fobias e frustrações, quer logo que o jogo comece, seja o que Deus quiser. “O gol vai sair”, falava o vovô.

Lembro que meu avô tinha me levado bem cedo para o jogo, vovó tinha caprichado no café da manhã e minha irmã mais velha foi com a gente ao jogo. Andando na rua, meu avô dando conselhos:

- Se concentra na hora do chute, concentra a força na perna e chuta, não tenha medo, chuta com tudo e venha me dar um abraço.

Chegando no clube nos dirigimos para a quadra e tomamos lugar na arquibancada. Diferente do primeiro jogo, a final seria realizada no clube aonde eu treinava, nada mais propício para dar tudo certo. Fui percebendo que os garotos aos poucos iam chegando com os pais, a arquibancada foi enchendo. Não demorou para o treinador vir nos chamar. Me despedi do vovô e da minha irmã e desci os degraus rumo ao vestiário.

O treinador tinha bem mais escolhas hoje, fiquei com medo de ficar de fora, rezei baixinho mas acabei escalado na ala esquerda, embora fosse destro, sempre preferi jogar pelo lado esquerdo, nem acabei reparando nos outros garotos, estava prestando atenção no treinador e muito ansioso para o jogo. Do time do primeiro jogo, o pivô e o ala direito foram trocados por garotos da manhã, deixando o time assim mais competitivo, nada a reclamar.

Primeiro tempo, posso contar que terminou 0 a 0, o goleiro deles era muito bom, lembro que como de costume, tinha desperdiçado várias chances de abrir o placar, mas não fui o único, o nosso pivô perdeu igualmente muitas, era um moreninho baixinho, bom de bola, faro de gol. No intervalo, o treinador nos elogiou bastante, tínhamos que manter o mesmo nível que no final iríamos acabar vencendo, o gol seria questão de tempo, ele ia sair, eu tinha esperança. Entrando na quadra novamente, agora para o segundo tempo, olhei para as arquibancadas, meu avô acenando pra mim, incentivando. O time deles voltou modificado, o goleiro havia sido trocado. Achava difícil que esse goleiro fosse tão bom quanto o outro, saberia em minutos.

Queria relatar todos os pormenores desse segundo tempo, não deixar passar nada em branco, mas vou pular para quando faltavam apenas cinco minutos para o fim. Nesse momento vencíamos o jogo por 2 a 1, o nosso pivô tinha feito os dois gols e o goleiro era bem mais fraco que o do primeiro tempo, foi nesse momento que eu vi, o que eu vi me paralisou por completo, minhas pernas ficaram fracas, comecei a suar frio, o jogo era a coisa que menos me interessava agora, queria fugir, sair correndo, o medo de infância diante de mim e eu tinha visto até então. O nosso ala direito, um dos garotos que treinava pela manhã, ele tinha o braço direito bem menos e mais fino que o outro, fora que a mão parecia que não podia mexer os dedos, estática no gesto de “hang loose”. Medo, calafrios, desespero. Sufocado, tinha que sumir dali. No meu desespero cheguei para o treinador e falei:

- Treinador, estou muito cansado, pode me substituir?

O maldito pediu para que eu ficasse, que eu estava jogando bem e que faltava pouco tempo para o final do jogo, tive que obedecer. Não mais corria, me mantinha no meio da quadra, quietinho do lado esquerdo, não voltava para a defesa e nem ia para o ataque, longe do “bracinho”, querendo que o jogo acabasse, foi quando outro fato marcante aconteceu. A bola caiu no meu pé, dei um bico para frente me livrando dela, estava no meio da quadra, ela foi devagarinho para o gol e passou embaixo das pernas do goleiro, um frangaço. Na hora gritei: “Golllll”, quase no mesmo instante todos gritaram, meus companheiros vieram me abraçar. Em um segundo estava muito feliz no seguinte, o “bracinho” estava quase em cima de mim me abraçando, corri desesperadamente, saindo da quadra, era proibido jogador sair da quadra, que se dane, naquela hora, no meu imaginário infantil, estava lutando pela vida. Fui abraçar meu avô e minha irmã.

Quando voltei para a quadra, recebi uma bronca do treinador, nada mais importava, fiz meu primeiro gol e queria dar o fora dali o mais rapidamente possível. O jogo acabou 3 a 1 e eu fui embora muito rápido, meu avô notou a minha agitação e fomos embora sem que eu pegasse a minha medalha. Meu avô estava mais feliz do que eu. No bar perto de casa pagou um refrigerante pra mim e para minha irmã, ainda anunciou uma rodada grátis de chopp para os pinguços de plantão:

- Hoje celebraremos o primeiro gol do meu neto.

Nos dias atuais já são mais de mil gols, mas o primeiro permanece como o mais marcante da minha vida.